TYBYRA: Uma Tragédia Indígena Brasileira - DRAMATURGIAS EM PERSPECTIVA
Afonso Nilson de Souza , Laranjeiras do Sul (PR), 24/06/2024
Dramaturgia de estreia do Potiguar(a) Juão Nÿn, trata-se de uma ficção sobre o primeiro caso de TBLGfobia com um nativo documentado no país
Capa do livro

Ttybyra – explosões e apagamentos

De certa maneira, ler Tybyra: uma tragédia indígena brasileira é como entender o português como segunda língua. Os estratagemas linguísticos que o autor, o multiartista potiguar(a) Juão Nyn, usa para localizar, sublinhar e marcar as expressões e a identidade dos povos indígenas com o uso do “y” em substituição às letras “i” em todas as palavras do texto desloca a ficção para um estranhamento de língua estrangeira, de imersão e vislumbre de culturas ancestrais que a força de violências e opressão foram deslocadas para as periferias e à raridade.

O texto, publicado pela primeira vez em 2020, se constitui como contraponto ao relato histórico Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614, escrito pelo padre francês Ivo D'Evreux, especificamente quando trata da execução de um indígena tupinambá condenado à morte por sodomia, talvez o primeiro caso de TBLGfobia documentado no país. Juão Nyn, a partir do texto histórico, dá voz e nome ao condenado, o localiza e contextualiza, reduz o seu apagamento perante a história e ressignifica a sua relevância para além de uma curiosidade etnográfica do século XVII, mas como sintoma de séculos de genocídio indígena e de gênero.

As tropas francesas que executaram Tybyra em nome da moralidade, no texto de Juão Nyn, são as mesmas que o visitavam em seu abrigo, no segredo e no isolamento das matas, para descobrirem o prazer proibido e comum das relações homoafetivas, ainda mais comum aos homens da caserna. O enaltecimento do prazer, a liberdade e a força do relato é conduzido pelo monólogo da personagem em um jogo de rememorações e desvelamento da hipocrisia ainda hoje reinante.

A opção pelo monólogo como estratégia para dar voz a Tybyra dialoga com o uso da iluminação para desvelar, aos poucos, o corpo, a identidade e o contexto em que a personagem se insere. Os deslocamentos entre a intimidade com os soldados e a consequente prisão e execução se desenrolam ao mesmo tempo em que cada vez mais nuances da floresta, relações familiares e de isolamento são reveladas; gostos, sabores e cores se descortinam em memórias que culminam em um silêncio abrupto após a explosão.

Tybyra tem uma execução grandiloquente, digna das punições e torturas geralmente perpetradas e imaginadas por gente muito devota, defensora da família e dos ideais cristãos: ele é colocado na boca de um canhão para ser destroçado, partido ao meio após o disparo. A última cena, A Execução, antecede a explosão distendendo o tempo com algumas das passagens mais contundentes do texto, uma espécie de autoconsciência do martírio, acusação da hipocrisia de sua condenação e redenção pela revolta.

A edição bilíngue conta com tradução integral para o Tupi Guarani Moderno de Luã Apyka, prefácio da pesquisadora Eliane Potiguara e as belas ilustrações de Denilson Baniwa. Mas são as reflexões e informações de Juão Nym contidas na introdução e no posfácio que localizam a obra em seu contexto histórico e ficcional. As reflexões não apenas sobre o extermínio indígena, mas sobre a supressão das línguas é fundamental para contextualizar as opções linguísticas, o uso do “y” como preponderante e constituinte do que o texto é e representa no panorama atual.

Para mim, é mais fácil se acostumar com o “y” em todas as palavras do que com expressões que deslocam temporalmente e imageticamente a narrativa para outro século, contexto e identidade. Expressões como “sucesso”, “de boa” ou mesmo “engomadinho” parecem dissociadas de um personagem que habita o século XVII. Entretanto, entendo a perspectiva de atualizar o debate através do uso coloquial da linguagem, potencializar a consciência do apagamento de violências históricas que tanto contribuíram e ainda contribuem para que as mesmas violências sobrevivam cotidianamente no país.

E nesse sentido, pensar na força do “y”, letra sagrada para o povo Tupi-Guarani, questiona com força poética e linguística o fato de que nenhuma das 247 línguas indígenas brasileiras catalogadas é estudada no ensino regular, com raras exceções em escolas bilíngues localizadas nas terras indígenas. O uso do “y” evoca o apagamento de línguas que sobreviveram milhares de anos, e outras que, extintas, jamais saberemos quais letras e sons poderiam entrar no alfabeto. Tybyra, o personagem sem nome retratado pelo padre Ivo D'Evreux no século XVII, ressurge no conturbado século XXI a partir da criação de um autor indígena, poeta, músico, dramaturgo e ativista capaz de pensar a homofobia e a transfobia ao longo da história através de suas palavras e poétyca contundentes. Dramaturgia de estreia do artysta Juão Nÿn foi montada com direção de Renato Carrera.

 

Tybyra: uma tragédia indígena brasileira, de Juão Nym

Editora Selo do Burro, 85 páginas, 2020