Manifesto Transpofágico - DRAMATURGIAS EM PERSPECTIVA
Afonso Nilson de Souza , Laranjeiras do Sul (PR), 23/10/2023
Texto narra as contradições e expectativas de familiares e da sociedade como um todo sobre o corpo trans
Capa do livro

Sobre giletes, silicone industrial e transfobia

Ano passado, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram assassinadas no Brasil 131 trans e travestis, o que coloca o país, pelo décimo ano consecutivo, como o que mais mata transexuais do mundo. Achei importante começar esta resenha com dados estatísticos, pois a narrativa autobiográfica de Manifesto Transpofágico, texto teatral da atriz e dramaturga Renata Carvalho, publicado pela editora Monstra em 2021, os usa do modo contumaz e impactante.

Ha alguns anos Renata Carvalho encenou o monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com direção de Natalia Mallo e texto da escocesa Jo Cliford. O espetáculo, rechaçado e proibido diversas vezes por advogados e religiosos que se sentiram ofendidos com a associação do Cristo com uma personagem transgênero, obteve seguidas vezes vitórias judiciais contra a censura prévia e equivocadamente aplicada.

Entretanto, o ciclo de ódio e perseguição à atriz pela realização do espetáculo, as agressões, xingamentos, a execração pública em redes sociais e sites de notícias tidos como conservadores sublinharam o tipo de preconceito e violência de gênero que não raras vezes são o estopim para os números vexatórios de assassinatos de transgêneros no país. É a partir desse contexto de violências e contínua ameaça que, de um modo dolorosamente íntimo, a autora localiza e esmiúça em Manifesto Transpofágico as consequências da transfobia como onipresentes em sua trajetória.

O monólogo narra as contradições e expectativas de familiares e da sociedade como um todo sobre o corpo trans, sua exclusão gradativa do convívio e as dificuldades, que beiram não raras vezes, a impossibilidade de inclusão no mundo do trabalho formal e das oportunidades de crescimento profissional. Consequência disso é o índice exorbitante de prostituição compulsória entre a comunidade trans, 90%, segundo a nota de rodapé n 28. Sim, o texto possui 66 notas explicativas que justificam, informam e localizam os dados apresentados na performance.

Embora o teor explicativo possa parecer desconexo em um texto teatral, a crueza violenta, o modo sem floreios, direto ao ponto e quase ríspido com que a autora contextualiza os dados fortalece o tônus da narrativa com a contundência de uma força poética avassaladora. A descrição dos procedimentos caseiros para aplicação do silicone industrial, necessário para se tornar atrativa no mercado do sexo, as injeções sem anestesia e os curativos fechados com cola rápida são descritos com uma precisão cirúrgica, a mesma que parece nunca estar presente nesses procedimentos perigosos e controversos.

A presença das artistas trans no cotidiano brasileiro, nos programas televisivos, nas capas de revista em contrataste com a violência exacerbada, os assassinatos quase nunca esclarecidos, a associação com os mais variados tipos de doenças e contravenções são contextualizados por Renata Carvalho com desenvoltura que evidencia de modo enfático discrepâncias e contradições. Às vezes com uma leveza que beira o humor, um humor sarcástico e irônico, o texto enuncia e alude a preconceitos muitas vezes despercebidos, velados, camuflados em um misto de pretensa abertura ou liberalidade, mas que por vezes se revelam, a partir das provocações da autora, em um misto de indulgência, afastamento e transfobia.

A onipresença do corpo seminu da atriz e seu desvelamento; as indicações cênicas com detalhamento do foco em partes específicas, a bunda, o sexo; as nuances de cores na diagramação do próprio texto, que sublinham transformações, trajetórias; os vídeos, as projeções e inserção de personagens icônicas do imaginário brasileiro e as denúncias de um Estado transfóbico, das torturas, das prisões ilícitas, do abandono e do puro e simples ódio despropositado e hipócrita elevam o texto de Renata Carvalho para além do panfletário, do informativo em direção a uma contundente autodescoberta só possível através da arte. Na verdade, é a gente que fica nu ao ler o texto.

 

Manifesto Transpofágico, de Renata Carvalho

Editora Monstra, 100 páginas, 2021