Estudos sobre a perda - DRAMATURGIAS EM PERSPECTIVA
Afonso Nilson de Souza , Laranjeiras do Sul (PR), 01/05/2023
Quatro textos com compõem o mais recente livro do dramaturgo baiano Ed Anderson

 

Solidões compartilhadas

Os quatro textos com compõem Estudo sobre a perda, o mais recente livro do dramaturgo baiano Ed Anderson, publicado pela editora Humanaletra em 2022, fazem parte da intensa produção do escritor na década de 2010. Autor de diversos textos,  como O Buda Quebrado (2017), encenado pelo Coletivo Flama e Os Homens Feios (2015), vencedor do Prêmio de Dramaturgia  da Fundação Guilherme Cossoul (Lisboa/PT),  os textos de Ed Anderson são recorrentes, principalmente na cena paulistana, sendo montados por encenadores como Elias Andreato, Francisco Medeiros, Mauro Baptista Vedia, entre outros.

Há nos textos de Estudo sobre a perda o uso de uma ambiência que remete ao Cinema Noir, aos bares enfumaçados e ao jazz, ao mesmo tempo em que mergulha no cotidiano brasileiro com todas as suas idiossincrasias, embates, preconceitos e humor.  Os diálogos ágeis, musicais, revelam personagens dotados de uma humanidade suburbana, desgastados pela solidão e por perdas devastadoras. Não apenas a morte despropositada e abrupta, que soterra os personagens com ausências inevitáveis, mas a perda da juventude, do amor, da saúde e da alegria são temas que perpassam os textos do volume.

Outra característica marcante dos textos é que todos os personagens são maduros, oscilam na faixa dos 40 aos 80 anos. Não é a toa que muitas das referências dos personagens, suas escolhas musicais e hábitos, seus objetos pessoais e concepções de mundo parecem trazer nuances de outras décadas. Ninguém, nos textos de Ed Anderson, procura uma música específica num aplicativo de celular.  Os discos de vinil, os   boleros, a Bossa Nova e o Rock and Roll imperam absolutos na cena do autor. Os cigarros, os ambiente enfumaçados, as taças de vinho e as reminiscências também.

Em Os dois e aquele muro, texto que abre a publicação, o jogo de sedução entre os dois personagens, homens para além dos quarenta anos, parece traçar uma espécie de dança, de embate sensual, pleno de subtendidos e confissões acidentais que culminam, não necessariamente num enlace amoroso, mas num encontro de saciedade mútua, de aplacamento de duas solidões, que por um breve instante de volúpia, têm um intervalo. Embora o erotismo pulsante, o jogo de oscilação entre  ocultar e revelar o desejo mantenha o texto em uma tensão constante, o sensível desenrolar das personalidades, das fragilidades e da solitude das personagens dá vazão à comoção, à empatia pela identificação, pela delicadeza.

Em Para Duas, ao mesmo tempo o texto mais antigo e recente a ser encenado da coletânea (em 2012 pela Cia Perna de Palco, da cidade de Ipatinga-MG; com remontagem presencial em 2021, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo), duas mulheres se reencontram, após anos separadas, para colocar seus ressentimentos e culpas em discussão, em destaque e em constraste com o amor que sentem uma pela outra, por anos sufocado pela distância e pela mágoa.

Como nos outros textos, o jogo que se estabelece entre as personagens, que inicialmente brincam com encontros inusitados e fantasiosos, revela-se contundente, explosivo. O encontro entre as duas mulheres, de 50 e 75 anos, filha e mãe separadas por décadas, é repleto de ressentimento, de culpa e acusações, embora o tratamento dos diálogos, por diversas vezes, seja constituído pelo humor ácido da ironia e do sarcasmo. Há algo, inclusive, de Casa de Bonecas, o texto fundamental de Henrik Ibsen (1828-1906), quando a mãe, questionada pela filha sobre o abandono do lar, diz não se arrepender da necessidade e da escolha de ir embora. Ela não renega a dor da perda, da separação, mas parece crescer ao ostentar, sem ressalvas, tanto sua coragem de partir quando a de voltar.

Piso molhado, que estreou em 2019 no Teatro Cacilda Becker, realizando posteriormente temporada no Espaço Parlapatões, ambos em São Paulo, se passa num piano-bar, em ritmo de bolero, à meia luz e com nuances de fumaça pelo ar. No enredo, solidões que se encontram, personagens que transformam o inusitado do acaso em momentos de ternura momentânea, condescendência e amor. A bela amizade entre o pianista e a cantora, a cumplicidade cheia de humor e desafio entre os dois, exala uma leveza que constrasta com os relatos de expectativas frustradas e a solidão que se torna hábito.

O surgimento do encanador, no momento em que o pianista momentaneamente se ausenta, é o mote para embates divertidíssimos entre o viés popular, popularesco do personagem e as pretensões de diva da cantora. Os contrastes entre os dois personagens, sutilmente se transforma em condescendência, em identificação e, claro, em atração. O jogo entre as revelações das personagens e suas fracassadas tentativas de comedimento é ao mesmo tempo hilário em diversos momentos,  e cheio de doçura em outros. Há uma brutalidade e uma violência que parece se dissolver na aproximação dos dois. Isso, apenas até o limite do retorno do pianista, que sem querer os transporta novamente ao mundo de distâncias e impessoalidade dos prestadores de serviço.

O texto que fecha a coletânea é Dois pou um bordeaux, onde um casal faz do jogo imaginativo entre eles uma estratégia de aproximação e embate, deixando o leitor em suspense, em busca de indícios que revelem se os fatos narrados fazem parte das fantasias do casal ou se, dentro do enredo ficcional criado para cena, são reais. A ambivalência entre entre ficção dentro da ficção, entre verdades cruéis que se revelam invenção, desenham um relação de doentia cumplicidade, onde para ficarem juntos, dinâmicas de aproximação e afastamento, acusação e subserviência são também um jogo de sedução.

O jogo da sedução, do desnudamento, da invenção e da mentira convencionada são procedimentos criativos exacerbados pelo autor, utilizados em várias nuances em diversos contextos. Parece, por vezes, que pairamos, como leitores, no espaço indefinido, duvidoso, impalpável entre a brincadeira inocente de amigos que fingem para se divertir e a mentira deslavada, motivada pela autopreservação ou pelo desejo sensual. Essas indefinições, esse terreno nebuloso, talvez seja uma das sensações mais recorrentes desses quatro textos de Ed Anderson, uma sensação de névoa noturna, cigarros acesos, garrafas de vinho enchendo continuamente taças para bocas sedentas e, ao fundo, a música e o ruído da agulha arranhando leve um vinil na vitrola.

 

Estudos sobre a perda, de Ed Anderson

Editora Humanaletra, 2022

R$ 65,00