A metáfora viva
Em Palavra Viva - dramaturgias de Dione Carlos, (Aquilombô, 2022), o novo livro da dramaturga e roteirista carioca, temos uma coletânea com quatro textos que denotam algumas das principais características, temáticas e procedimentos criativos utilizados pela autora. A opção por releituras e composição dramatúrgica a partir de obras originais, reportagens ou referências biográficas unifica o conjunto. A exacerbação da metáfora, das figuras de linguagem, de subtendidos literários, filosóficos e teatrais também está presente em todos os textos. O meta-textual, a autorreferência, os saltos temporais, o esmaecimento das personagens em direção ao enfraquecimento da narrativa linear são constantes na estrutura e desenvolvimento dos textos da autora de uma já extensa obra encenada e publicada no Brasil e em diversos outros países,.
O texto que abre o volume, Oríkì (kongeriget-ìfé), é uma releitura, uma apropriação, uma transcriação de Hamlet utilizando a estrutura dos oríkis, poemas de origem africana. A adaptação presume a ação a partir do conhecimento anterior da trama de Shakespeare. Embora as personagens do Rei Cláudio, da Rainha Gertrudes, de Ofélia, do Fantasma e do próprio Hamlet estejam presentes, os textos se desenham como uma sucessão de poemas, de solilóquios dispersos, sem diálogos aparentes. Apenas a ação dispersa, presumida como dada anteriormente em meio à progressão dos textos poéticos. Há inicialmente um efeito de estranheza, que aos poucos vai esmaecendo em meio à criatividade e beleza das pulsões poéticas dos versos da autora. Mas, ainda assim, parece haver muito menos Shakespeare do que inventividade sobre o tema. Nesse sentido, a liberdade estrutural e poética se sobressai a uma base que perde consistência em direção à fluidez de sua apropriação.
Mamute, de 2013, é inspirado na notícia da descoberta do corpo de Hedviga Golik, cidadã ucraniana encontrada morta, sentada em frente a um aparelho de TV em seu apartamento, mais de quarenta anos após o sua morte. A memória, a solidão, o restante dos móveis empoeirados e apodrecidos além da poltrona onde o corpo se decompôs, o qual se torna uma das personagens do texto, as transformações do ambiente, da cidade, a mudança dos vizinhos parece passar incólume, invisível perante o esquecimento e o desaparecimento da personagem histórica. As personagens do Zelador, da Faxineira e do Empreendedor parecem tergiversar em relação ao que de fato é preponderante na narrativa, uma mulher que morre sozinha em seu apartamento e é descoberta apenas quarenta anos depois, quando da desapropriação do imóvel para futura demolição do prédio. Numa primeira leitura, tive a impressão de que a importância sociológica e filosófica do fato é tratada de maneira vaga, perde-se em discursos que parecem não se conectar à personagem primordial. Mas, relendo o texto, isso parece proposital, como uma metáfora sobre o silêncio de um corpo solitário em decomposição, apodrecendo em meio ao desenvolvimento descontrolado das cidades e do desafeto, que parece nutrir as relações interpessoais em um mundo cada vez mais egoísta e autocentrado.
Em Revoltar, inspirado na biografia da ativista e professora cubana Fidelina Gonzalez, Eu fui um soldado de Fidel, escrita por Renata Palottini, os meandros das ditaduras e das lutas de classe centrais na biografia dão lugar à profusão metafórica e poética que se apropria do entendimento sobre a vida da personagem. Esse parece ser um recurso usual nos textos de Dione Carlos: os discursos que se desencontram em meio à profusão de metáforas, de reflexões e frases poéticas de efeito. Tanto em Mamute quanto em Revoltar, esses recursos se repetem. Ambos os textos se inspiram e se baseiam em biografias, reportagens biográficas. O fato de que essas narrativas parecem se dissolver em meio a reflexões desencontradas leva a dramaturgia a outro lugar, a outras dinâmicas ou nuances de interpretação. Não estamos mais falando sobre uma personagem específica, ou período ou fato histórico específicos, mas sobre outra coisa. Os biografados, os fatos, são um mote em que a narrativa ou mesmo a recriação poética não se fixam. É sobre outra coisa que Dione Carlos fala. Sobre a sua visão particular, sobre as inquietações que lhe são importantes e onde mergulha na potência metafórica de suas personagens.
Caim é baseado no romance homônimo de José Saramago, que, por sua vez, toma como inspiração os primeiros livros bíblicos, configura-se como uma apropriação das narrativas do Pentateuco em direção a dilemas profundamente contemporâneos. Diferentemente dos textos anteriores, onde a profusão de metáforas por vezes extrapola a clareza que o relato histórico ou biográfico teoricamente pressupõe, em Caim as dinâmicas narrativas e os paralelos com as obras originais tomam formas díspares, novas interpretações e correlações com os problemas que interessam à autora, mas que estão intimamente relacionados com a obra original.
Não apenas o apagamento da memória dos povos negros, ocasionado também pelo contínuo e secular genocídio a que são submetidos, é problematizado poeticamente por Dione Carlos em seus textos, mas também o estigma de uma ascendência imaginada, ligada ao preconceito estrutural que associa os povos negros ao crime, à devassidão e à lassidão, que, por sua vez, relaciona-se à ascendência do personagem bíblico de Caim, e também ao surgimento e desaparecimento na narrativa bíblica de Lilith, a primeira mulher, anterior a Eva na tradição cristã. Metáforas potentes em sua associação e correlações, em sua forma e força poética.
Dione Carlos é uma das mais importantes dramaturgas negras em atividade no país, capaz de problematizar e refletir sobre alguns dos temas mais urgentes e controversos do cotidiano brasileiro contemporâneo, sem, contudo, descuidar do trabalho com a linguagem, com a beleza e inteligência de suas metáforas. Palavra Viva é um livro difícil e belo, escrito para ser lido mais de uma vez, confundindo-se ou mesclando-se entre o poema e a dramaturgia.
Palavra Viva - Dramaturgias de Dione Carlos
Editora Aquilombô - 2022. 162 páginas.
R$ 40,00