By Heart e outras peças - DRAMATURGIAS EM PERSPECTIVA
Afonso Nilson de Souza , Laranjeiras do Sul (PR), 29/09/2022
Chega ao público brasileiro By Heart e outras peças, de Tiago Rodrigues publicado pela Editora 34, que reúne, da sua produção recente, cinco textos teatrais
Capa do livro By Heart e outras peças

A elegante simplicidade da erudição

O dramaturgo português Tiago Rodrigues, talvez mais conhecido em círculos especializados de realizadores e público de teatro, vem sendo celebrado por diversas distinções e reconhecimento internacional, como o título de Chevalier de l’Ordre des Arts e Lettres, recebido pela República Francesa em 2018; o Prêmio Pessoa, um dos mais importantes prêmios literários de língua portuguesa, em 2020, ou mesmo o convite para dirigir, em 2023, o Festival de Avignon. Em atividade desde o final da década de 1990, com dezenas de textos encenados nos principais festivais de mundo, é com certo atraso e pouca repercussão que chega ao público brasileiro seu By Heart e outras peças, publicado em 2021 pela Editora 34, que reúne, da sua produção recente, cinco textos teatrais – sobre os quais falamos a seguir.

By Heart, texto que dá título à coletânea, foi encenado no Brasil na 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo - MITsp, em 2020, com atuação do próprio autor. É um texto para um ator e dez espectadores, que têm a missão de memorizar o soneto 30, de William Shakespeare. É uma reflexão poética sobre a memória, sobre o sentido da literatura e o amor aos livros. Tiago Rodrigues, com simplicidade erudita, guia o leitor pelas vicissitudes de sua avó, que, com a perspectiva iminente de perder a visão, deseja decorar um texto singular e representativo na sua história como leitora. O jogo entre o ator e os espectadores com a missão de memorizar o texto, de mergulhar no universo artístico de um aficionado pelos livros, pela leitura, é tocante em sua construção e no risco, no suspense que paira sobre a possibilidade nada implausível de que os dez espectadores não sejam capazes de realizar a tarefa que lhes foi atribuída.

Em uma época como a nossa, em que o fascismo e a censura rondam as artes com apetite e os dentes à mostra, um texto como Três dedos abaixo do joelho, em que o autor, engenhosamente, recorta e monta um quebra-cabeças com excertos das justificativas dos cortes e proibições nos espetáculos portugueses durante a ditadura salazarista, acaba por ser mais do que apropriado, necessário. O trabalho arquivístico – de pesquisador arguto e adaptador criativo na construção do texto, seu encadeamento e fina ironia – constrói nas vozes das personagens um tecido repleto de humor pelo ridículo e aleatório das concepções artísticas dos censores, mas também um panorama da história do teatro, da dramaturgia propriamente dita, e sua capacidade de mobilizar as forças repressoras em defesa de estados autoritários.

Sopro, tal como Três dedos abaixo do joelho, tem na história do teatro, das encenações e das autorias, sub-repticiamente, seu mote e sua estrutura. Ponto, a personagem que passou a vida soprando os textos para os artistas de palco, atores e atrizes com lapsos de memória ou incapazes de lembrar suas falas nos momentos específicos de sua enunciação, se vê na possibilidade de sair do subsolo e subir ao palco para relatar sua experiência, sua trajetória de textos e conhecimento dos mais diversos e importantes personagens da dramaturgia ocidental. O trânsito entre dramaturgias, mas também as intermitências das relações entre os artistas, entre a diretora, técnicos e atores que fizeram parte da sua história, enchem de nuances em tom sépia as memórias a serem relatadas. A sutil delicadeza do encadeamento dos textos, a ternura e o desgaste das despedidas, do público que assume outras características e quantidade de afluência, tal como as encenações que já não mais necessitam de um ponto, desenham as novas perspectivas do teatro, refletem sobre novos paradigmas de entendimento e configuração das artes cênicas na atualidade.

Tiago Rodrigues é um autor com uma extrema capacidade de transformar e adaptar suas fontes literárias, artísticas e culturais de modo coeso, criativo e deslumbrante. E é isso que acontece em António e Cleópatra, que condensa os personagens do texto shakespeareano homônimo em duas vozes, em duas fontes de enunciação que se alternam não apenas para remeter ao enredo, mas ao aprofundamento dos contextos amorosos e políticos que norteiam o pano de fundo da relação entre as personagens. Se em By Heart há uma pulsão ensaística na descrição dos livros e sua imersão na diegese, em António e Cleópatra o embate entre as concepções de mundo, traições e escolhas das personagens se dá pelo conflito que se desenha nos solilóquios e na construção das ações para encenação que se delineiam no texto e o encaminham para seu desfecho violento, poético e inconclusivo.

O texto que abre a coletânea, Natalie Wood, é o mais breve. Entretanto, parece condensar uma série de procedimentos criativos presentes nas obras do autor, como a ambivalência ou indefinição de tempos, os enunciados poéticos em verso e uma clareza, uma familiaridade que aproxima e interessa o leitor pelo que se narra ou alude. Em Natalie Wood, Tiago Rodrigues aborda os últimos momentos de vida da atriz que dá nome ao texto, contextualiza sua trajetória, suas indicações ao Óscar e sua abrupta e misteriosa morte por afogamento. O humor e a delicadeza com que os últimos momentos da atriz são aludidos, e as correlações com o que poderia ter sido, e o que poderia ter sido até o desenlace do que realmente aconteceu, abrem uma perspectiva mais ampla, mais próxima aos possíveis últimos momentos de cada leitor, espectador. Tiago Rodrigues, também em Natalie Wood, revisita seus procedimentos criativos, seu modo de parecer próximo e claro falando de temas e obras complexas, sua simplicidade e erudição condensados em textos que, além de absolutamente relevantes no contexto internacional da produção dramatúrgica nas artes cênicas, são um prazer de ler e ouvir.

 

By Heart e outras peças, de Tiago Rodrigues

Editora 34, 2021

224 páginas

R$ 69,00