NEGREIROS: HISTÓRIAS QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA
Thiago Silva, Porto Alegre (RS), 02/10/2024
Espetáculo aborda a intersecção entre presente e passado, refletindo sobre a condição do negro no Brasil
foto: Laís Joakina

Sobre navios que continuam navegando

 

“Estamos em pleno mar”, diz o primeiro verso do poema Navio Negreiro, escrito por Castro Alves em 1868. No ano de sua escrita, ainda que a Lei Eusébio de Queirós - promulgada no Brasil em 4 de setembro de 1850 - proibisse o tráfico de escravos em terras brasileiras, a escravidão da população negra ainda era uma realidade aceita e naturalizada no país. Apenas duas décadas depois do verso ganhar forma que o Brasil - ainda sob a insígnia de um Império - assinaria a abolição da escravatura, libertando de forma irrestrita todos os humanos cativos em seu território. Em 13 de maio de 1988, a princesa Isabel - então monarca regente - assina a Lei Áurea, simbolizando o fim da escravidão e o estabelecimento de relações livres de trabalho. O que a lei promulga e o que a História revela, entretanto, nem sempre possuem ângulos compatíveis. Às vezes, mesmo no presente, certos navios continuam navegando. Seus porões, com todas as suas feridas, seguem abertos.

“Estamos em pleno mar” também é uma frase presente no espetáculo Negreiros: Histórias que a História não conta, do Grupo Teatral Leva Eu, de Viamão (RS). Simbólico e sintomático, o verso extraído da obra de Castro Alves sugere -  tal como o próprio trabalho do grupo viamonense - que ainda estamos navegando por águas muito próximas de um mar pretérito. Pois, se já se passaram 136 anos da abolição da escravatura no Brasil, o racismo estrutural no qual a sociedade brasileira foi forjada se faz presente em praticamente todos os aspectos de nossa vida política e social. Não obstante, o espetáculo aborda justamente esta intersecção entre presente e passado, refletindo sobre a condição do negro no Brasil através de questões contemporâneas que se fundamentam em aspectos históricos de nossa formação cultural. Deste modo, temas como tráfico de pessoas, trabalho análogo à escravidão na contemporaneidade, diáspora africana e fluxos migratórios, violência policial, entre outros temas, estruturam-se em um emaranhado dramatúrgico que conta, reflete e denuncia.

A visceralidade, o cuidado e a beleza da dramaturgia original  de Diego Ferreira dá conta de todas as questões abordadas sem que seu texto torne-se programático ou beba de maneira anacrônica na referência original. E, em que pese o texto do espetáculo se valer pouco de seu referente literário em termos narrativos, é na livre relação com a crítica postulada pela obra de Castro Alves que o trabalho suga toda a sua força política. Distanciada da linguagem poética de Alves, a dramaturgia do espetáculo não distancia-se, contudo, das questões que eram caras ao autor. Pois, se há uma diferença latente entre ambos os textos, há um elemento fulcral nesta intersecção aparentemente invisível na cena: as violências que interpelam, há séculos, determinados grupos no Brasil. Em especial, os negros.

Destaca-se também a atuação de Juliano Camargo Félix, que se despe enquanto sujeito na cena para mostrar que o pessoal é, de fato, universal e político. Na esteira dos teatros do real que se valem de material autobiográfico para a composição de suas dramaturgias, o trabalho do ator costura a proposta dramatúrgica de atualização do texto de Castro Alves com suas próprias histórias pessoais, elucidando, nos relevos do ato cênico, a atualidade e a urgência das discussões travadas. É, portanto, pelo corpo e pela voz do ator que o texto dramatúrgico se situa praticamente o tempo inteiro, ainda que estabeleça-se relações com os demais elementos que compõem a encenação.  Interessantes, neste sentido, são as escolhas das histórias que tangenciam a discussão sobre as formas que o racismo atua no corpo dos grupos aos quais oprime e no tecido social em que os sujeitos desses grupos estão atrelados. 

Assim, do jogo travado entre a linguagem textual e o trabalho corpóreo no palco, faz-se uma espécie de autoficção retroalimentar em cena, a partir do texto referente de Castro Alves, da escrita dramatúrgica de Diego Ferreira e do campo expresso na dramaturgia do próprio ator, a entendendo como uma voz - verbal e corporal - que é por ele articulada. Nesta trajetória, relatos sobre um horizonte de imaginação onde a violência demarca percepções sensíveis dos lugares que habitamos ou sobre a etimologia do sobrenome do ator (que faz questão de frisar o da Silva como um aspecto de sua origem racial e social) e a posterior metáfora-relação ou relação-imagem da palavra “Félix” com a palavra “Fênix”, por exemplo, estabelecem uma brincadeira linguística que referencia passado e presente no teor daquilo que se queima e se reconfigura, em um duplo sentido: na violência racista, que encontra meios de se perpetuar através dos tempos, mas, principalmente, na resistência à esta violência, em um corpo que renasce das cinzas ainda mais forte e combativo.

A direção de Igor Ramos, por sua vez, dá sustentação a estas camadas de compreensão da realidade brasileira interpostas no espetáculo, criando espaços no palco que orientam o olhar do espectador para cada uma das situações descritas e vivenciadas pelo ator. Em uma relação que é sempre articulada pela cenografia de Rodrigo Shalako - um grande objeto cenográfico que lembra os contornos de de um navio - e pela produção de sentido que a iluminação criada pelo próprio diretor acarreta na cena, cada mudança de ângulo e cada mudança de cor apreende um fator específico de narração. Deste modo, a direção caminha ao encontro da fragmentação dramatúrgica proposta pelo trabalho, e os voos entre o passado, o presente e o imaginário social em relação ao negro no Brasil são costurados por uma encenação que vai tecendo atmosfericamente cada um destes fragmentos.

Um ponto de conexão interessante entre atuação, direção e dramaturgia, neste caso, é a cena em que o ator imagina/narra uma batida policial que nunca acontece, de fato. O medo, a suspeição em relação a si está ali, presente, a cada sensação, respiração, palavra. A certeza que será, de algum modo, violentado pelos policiais também. Mas a batida não acontece - o que não ameniza o pânico instaurado com sua mera possibilidade. Essa cena discute, justamente, práticas e representações oriundas do racismo que são naturalizadas em nossa sociedade. Aqui, o texto, o trabalho do ator e a preparação do rito criado pela direção - através das luzes que fazer emergir a presença de uma viatura policial e a onipresença do pavor em relação a este poder estabelecido - dialogam enquanto uma miríade das agressões das quais aquele corpo é refém.

Outro destaque do trabalho é a trilha sonora executada ao vivo por Cigarra e a performance de Lucas Terres, o intérprete de libras do espetáculo. A trilha performada ao vivo concede uma vivacidade cênica que atravessa as narrações do ator, sendo por ele assimilada. Tanto o som quanto a voz de Cigarra humanizam tudo o que acontece no palco, mesmo nos momentos de maior tensão. Já a interpretação em libras de Lucas Terres é um espetáculo à parte, pois não há apenas uma tradução do que é dito pelo ator, mas uma relação performática com ele e com o texto que é narrado. Assim, muitas vezes, o intérprete sequer fica no espaço demarcado, invadindo o palco e performando ativamente ao lado do ator. Como um mosaico discursivo, o espetáculo então amarra os artistas envolvidos em um todo que dá viga ao que politicamente lhes interessa.

Durante os anos da ditadura civil-militar no Brasil, o poeta Solano Trindade, militante ativo do movimento negro no país, também ressignificou o poema de Castro Alves, dando-lhe sentidos vastos em relação à compreensão da presença negra neste território. Se, em um verso Solano escrevia “Lá vem o navio negreiro trazendo carga humana”, no outro escrevia “Lá vem o navio negreiro, cheinho de poesia…”. Esta dupla acepção, diz aquilo que, hoje, a História já mostrou ser inescapável: nunca há uma via de mão única nos processos históricos, mesmo quando as histórias são contadas apenas pelos “vencedores”. O espetáculo Negreiros, como seu subtítulo diz, conta histórias que a História não conta: de resistência, combate, violência, paixão e orgulho. E, nos emaranhados de sua proposta, concede ao espectador a oportunidade de olhar para além do naturalizado, dos efeitos de naturalização, daquilo que está dado. E, desta forma, olhando, transformar.