MARIA PEÇONHA
Leandro Silva, Porto Alegre (RS), 23/02/2024
Espetáculo da Cia Gente Falante celebra a diversidade do teatro de animação e aposta no protagonismo na infância
Foto: Adriana Marchiori

Crianças como leitoras da vida

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

A Cia Gente Falante, companhia de consolidada trajetória no teatro de animação gaúcho, traz à cena sua última montagem, Maria Peçonha, baseada na obra homônima do escritor André Neves. Tive a oportunidade de assistir ao espetáculo em duas ocasiões: no dia 10 de setembro de 2023, no Teatro Renascença, dentro da programação da 30ª edição do Festival Porto Alegre em Cena e no dia 12 de janeiro de 2024, na Sala Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mario Quintana, desta vez dentro da programação do festival Porto Verão Alegre.

Antes de levantar alguns elementos de análise desta obra, é importante destacar que a história da Cia Gente Falante está indissociada da cena gaúcha de teatro de animação, gozando de uma trajetória de 33 anos (foi fundada em 1991), com desdobramentos e interfaces com outros campos como TV, cinema, bonecoterapia e literatura, angariando reconhecimento através de muitas premiações e participação em festivais no Brasil e exterior. A parceria de Paulo Fontes e Eduardo Custódio nas múltiplas funções de criação, atuação, produção e na pedagogia da cena bonequeira já é igualmente reconhecida. Em Maria Peçonha, a dupla se junta à atriz Maria Carolina Aquino, que assume o papel de uma contadora de histórias, e a direção de cena é assinada por Tatiana Cardoso.

É importante destacar que a obra estreou em 24 de junho de 2023, após a interrupção do processo criativo por conta da pandemia da Covid-19, e neste intervalo de tempo a equipe se dedicou ao constante aprimoramento do processo, resultando no trabalho que ora chega ao público, maduro e marcado pela diversidade de tipos e técnicas do teatro de animação, recursos de tecnologias multimídias e a fascinante história de Maria Peçonha, narrada e inflada de vida através dos bonecos, objetos e a igualmente diversa forma de atuação do elenco. Sob aspectos gerais, a obra apresenta um primor artístico coerente com a trajetória da Cia Gente Falante, uma companhia reconhecida pelo cuidado na composição das formas animadas e na precisão das técnicas de animação.

Maria Peçonha é uma história que celebra a imaginação, as histórias e tradições de um Rio Grande do Sul profundo e encantado. A saga de Maria é narrada de forma épica, com direito a um arco de personagem e um desfecho bem acabado, ocorrido no passado de uma cidade saída dos conflitos de guerra. Destaco como a dramaturgia narra em estrutura não linear a história da artesã Maria, dando especial atenção ao momento do “arco da queda”, para culminar com uma mensagem de respeito à diferença e tolerância, sem cair em moralismos vazios e pieguices, gerando profunda empatia no espectador pela agora amarga Maria Peçonha.

O desenrolar da dramaturgia está comprometida a no fazer compreender que a sequência de dolorosos eventos levaram a artesã Maria à sua queda/transformação em “Maria Peçonha” e por quais caminhos ela encontra a recuperação de sua luz interior.

Destaco que Maria Peçonha é um espetáculo para crianças que não subestima a inteligência das mesmas e tem o cuidado de se direcionar também para o público adulto, que naturalmente acompanha as crianças ao teatro. É de fato um teatro para toda a família, uma vez que mantém uma camada de referências, chistes e tiradas cômicas que divertem os adultos do início ao fim. A Cia Gente Falante não dispensa às crianças um tratamento ingênuo, como incapazes de ler questões profundas da vida, um problema que ocorre em muitos espetáculos de teatro para crianças e especialmente de bonecos, linguagem que (equivocadamente) quase virou sinônimo de uma arte dirigida apenas para as infâncias. O espetáculo apresenta para as crianças, com considerável carga simbólica e emocional, as dores de Maria, de sua relação com o sobrenatural, não se intimidando em falar para esse público de medos, de intolerância, de desrespeito ao outro e à diferença, dos horrores da guerra e da morte, temas para as quais as infâncias contemporâneas possui cada vez mais acesso e capacidade de compreensão, dentro das suas singularidades.

Essa é uma questão que tem ocupado bastante os fazedores do Teatro de Animação na atualidade, especialmente no tocante dos espetáculos enfrentarem “temas tabus” no teatro para crianças. A Cia Gente Falante se propõe a fazer frente a este desafio de falar de temas sensíveis às infâncias e conseguem com muita propriedade, compromisso e responsabilidade em Maria Peçonha.

Um outro aspecto que chama a atenção na montagem é a celebração da diversidade do Teatro de Animação. Esta arte milenar tem como uma de suas marcas as possibilidades técnicas - de construção, animação, composicional e relacional - quase infinitas e a companhia se dispõe a apresentar ao público uma significativa mostra dessas possibilidades. No espetáculo, estão presentes o teatro de objetos, o teatro de sombras, variadas técnicas homogêneas e heterogêneas com bonecos, como a tradicional luva, bonecos de animação direta e à vista do público, boneco de vara, de balcão, ora fazendo uso de técnicas mais usuais com anteparo, ora jogando com técnicas mais contemporâneas, no qual o corpo dos atores e da atriz estão em relação compositiva direta com o corpo dos bonecos.

O Teatro de Animação sempre teve o afã de identificar, classificar e reconhecer suas variadas técnicas, uma pauta garantida entre bonequeiros reunidos em um ateliê ou em qualquer discussão de cena, no corredor de um teatro ou numa mesa de bar. É um tema dos mais apaixonantes entre os brincantes desta arte. No entanto, importante destacar que longe de uma tentativa classificatória e engessadora, essa “charla bonequeira” por vertentes, tipos e hibridismos sempre operou no sentido de revelar a diversidade dessa forma teatral, que inclusive tensiona no contexto brasileiro o seu próprio conceito. Não é por outra via que a especialista no tema Sassá Moretti nos esclarece: “O conceito teatro de animação indica uma transformação tanto no que diz respeito ao caráter formal como conceitual desta forma teatral. Em um primeiro sentido, o conceito nos remete a uma poética que agrega um conjunto de linguagens reconhecidas entre nós como teatro de bonecos, teatro de máscaras, teatro de sombras, teatro de bonecos e mais recentemente teatro de imagens. No entanto, torna-se arriscado tentar reduzir a infinidade do teatro de animação a estas linguagens” (1).

Fica nítido o desejo da Cia Falante de apresentar ao espectador a diversidade do Teatro de Animação no seu espetáculo e, de quebra, celebrar a própria trajetória da companhia, marcada ela própria por uma variedade de usos dessa diversidade em seu amplo leque de criações. Por consequência, essa presença de variadas possibilidades de formas animadas num mesmo espetáculo gera uma certa desproporcionalidade, tanto na qualidade técnica da animação, quanto no tempo de permanência em cena. Enquanto a animação direta goza de alto primor, por exemplo, a luva marca uma presença en passant na cena e o teatro de objetos acaba por assumir um papel meramente ilustrativo da narração, tendo sua força estética e visual pouco explorada. No entanto, tal desproporcionalidade não retira o vigor de celebração das formas animadas em Maria Peçonha. A arte do teatro de animação está iniludivelmente reverenciada em cena.

Um elemento a destacar é o jogo de escalas que os bonequeiros fazem com os variados tamanhos dos bonecos. Ver Maria crescer ou diminuir, aparecer e desaparecer, por completo ou de forma apenas sugestiva, sob variadas escalas, gera um dinamismo e ritmo singular à cena, expondo a habilidade precisa dos bonequeiros nas técnicas de manipulação. Nitidamente, é na animação direta que Paulo Fontes e Eduardo Custódio se sentem “em casa” no espetáculo.

Há diferenças consideráveis nos níveis de registros de atuação entre a atriz Carol Aquino e os atores bonequeiros Paulo Fontes e Eduardo Custódio, e entre eles dois. Mas essa diferença acaba por jogar a favor da obra: a atriz sustenta bem a contação de histórias enquanto os bonequeiros de fato cuidam da animação precisa do amplo arsenal de objetos e bonecos de variadas escalas, nos quais Eduardo Custódio assume mais a contracenação e “engatilha” os inanimados para entrar em cena enquanto Paulo Fontes assume mais diretamente a animação destes. Certamente é um mérito da direção de cena, pois nota-se uma preocupação em arranjar essas diferenças para fazê-las operar em harmonia e a favor do resultado final, pois há um desenho nítido de alocação do que cada artista entrega de melhor para o conjunto da arquitetura cênica da peça.

Alinhado a este aspecto, chama a atenção também a sincronização dos recursos tecnológicos, especialmente as animações em videoprojeção, projeto audiovisual de excelente qualidade assinado por Maurício Casiraghi – a Cia. transpôs para o espetáculo as ilustrações da obra de André Neves, onde as tessituras dos seus traços saltam tridimensionalmente para o teatro, estabelecendo um trânsito com o livro, sem contudo esgotar a experiência de lê-lo - que funciona harmoniosamente com o desenho e a operação de luz e com a trilha sonora que embala a obra. Em Maria Peçonha os elementos cênicos e as tecnologias diversas que os costuram gozam de perfeita sincronização: a projeção mapeada não vaza para fora do anteparo e seus efeitos visuais chegam no tempo certo, talhados sob medida para caber no corpo da atriz, por exemplo, enquanto a luz e a música de cena nos abraça com volume, preenchimento e profundidade. Se o espetáculo, por um lado, lança mão de muitos recursos, por outro lado, não se identifica excessos.

Maria Peçonha é um espetáculo para crianças corajoso, sob diversos aspectos. Primeiro, e o mais importante, por topar trazer à cena um trabalho que aposta na capacidade das crianças de lerem à sua maneira a vida, incluindo suas dores, medos, violências, as questões fracturantes que fazem a tessitura da existência humana. A meu ver, se alinha à persistência de muitos artistas de um fazer teatral que enxerga criança como criança de fato é, e de manter-se comprometido com elas.

Enquanto artista bonequeiro, considero que a conexão que tradicionalmente se estabeleceu entre o teatro de animação e o teatro para crianças pode e deveria ser tratado como um privilégio e um desafio para falar com e a partir deste público. A Cia Gente Falante abraçou este desafio nesta montagem com muito compromisso, trazendo importante contribuição para o debate local e nacional sobre o que a cena para as crianças deve considerar.

Considerando o desafio de preservar a memória da também já assentada tradição do teatro de animação gaúcho, hoje ameaçado pela ausência de uma política pública de salvaguarda de seu importante legado cultural, a Cia Gente Falante promove ao mesmo tempo uma síntese, uma renovação e uma permanência dessa tradição em Maria Peçonha. Reafirma que o teatro de animação gaúcho permanece absolutamente relevante para a cena teatral do Rio Grande do Sul e indissociado de seu passado e presente.

 

NOTAS

(1) MORETTI, Maria de Fátima de Souza. A teatralidade do objeto na cena contemporânea – Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Literatura – UFSC. Florianópolis – SC, 2011 p. 23.