FRIDA KAHLO: À REVOLUÇÃO
Thiago Silva, Porto Alegre (RS), 15/02/2024
Peça traz para o palco um panorama vivo e atual da vida e da obra da pintora e intelectual mexicana
Foto Lucca Curtolo

O que nos revolta?

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

Eu me revolto. Vocês não se revoltam?”, indaga-nos Frida Kahlo, em uma das muitas cenas emblemáticas do espetáculo Frida Kahlo: À Revolução, da Cia Dramática, de Porto Alegre. Apresentada no Festival Porto Verão Alegre, em janeiro de 2024, a peça traz para o palco um panorama vivo e atual da vida e da obra da pintora e intelectual mexicana, que, não obstante, diz muito sobre o nosso próprio tempo. Com uma dramaturgia calcada na contemporaneidade, em uma relação direta com questões postuladas por debates e discussões urgentes da época em que vivemos, o trabalho - que segue em cartaz há mais de 10 anos - engendra elucubrações políticas que tensionam o lugar das mulheres, dos latinos e latinas, das trabalhadoras e trabalhadores, das maiorias minorizadas, dos grupos marginalizados, etc. por meio de um universo biográfico que se constrói sob uma perspectiva histórica que alimenta-se do ontem e do hoje em suas reflexões, especialmente acerca do feminino.

A Cia Dramática foi fundada em 2009 na cidade de Porto Alegre e, desde então, tem como foco a construção de uma cena feminista que pense e reverbere cenicamente este direcionamento filosófico e artístico, a partir das variáveis oriundas deste lugar de pesquisa e criação. Neste sentido, montagens como Todas Nós, Mulheres Atravessadas na Garganta, Mulheragem e o próprio Frida Kahlo: À Revolução trazem para a cena uma proposição artística vivenciada pela ótica feminista, que encontra na figura da mulher e no pensamento emancipatório de gênero a força propulsora de suas realizações. É neste cenário criativo que encontra-se a peça Frida Kahlo: À Revolução, concebida, escrita e com atuação de Juçara Gaspar, atriz que personifica a artista mexicana em suas dimensões íntimas, sociais, culturais e políticas.

O primeiro ponto que chama a atenção na montagem é, justamente, a força avassaladora de Juçara Gaspar em cena. A atriz consegue, de maneira ora sutil, ora visceral, estabelecer elos entre as mais distintas fases da vida de Frida Kahlo, ao mesmo tempo em que esboça relações indissociáveis com o nosso presente. Deste modo, presenciamos a dominação masculina e o machismo no cenário cultural da primeira metade do século XX, o jugo da arte latino-americana em detrimento de uma pensamento eurocêntrico categorizador, a doença e suas implicações na vida de uma mulher artista ou mesmo as recorrentes traições de Diego Rivera, companheiro de Frida, paralelamente ao ato de refletirmos sobre violências de gênero, feminicídio e assuntos correlatos. Esse imbricamento dramatúrgico entre a vida e a obra de Frida com o nosso tempo - a dramaturgia do trabalho também é assinada pela atriz - é complexo e nem sempre é dado de forma literal na cena, cabendo ao espectador tecer suas próprias considerações sobre os fatos, quase como um desafio que nos é lançado ao longo de todo o espetáculo: você consegue ver as violências e as dores pelas quais essa mulher passou também nas histórias e nas dores das mulheres que estão à sua volta?

Nesta direção, ainda que se trate de um espetáculo que se situa em uma narrativa dramática calcada em uma estrutura fabular - mesmo que não linear, pois a história de Frida não segue uma cronologia evolutiva no texto - questões e experimentações pautadas no contemporâneo visivelmente orientam a busca por aquilo que se quer dizer para além da própria vida da pintora, pensadora e ativista mexicana, mesmo que sua biografia esteja na centralidade de todas as ações delineadas na peça. Assim sendo, pensamos sobre as instâncias do hoje - sobre a misoginia e as violências de gênero que permeiam nossa sociedade, por exemplo - por meio das vivências de Frida no contexto ao qual estava atrelada, mas também nos possíveis paralelos com os nossos próprios contextos, sejam eles de foro público ou privado.

Não à toa, o trabalho corporal da atriz é um elemento mediador deste “entre”, deste baluarte histórico (na relação passado/presente) que permite que inúmeras mulheres possam ser retratadas em seu corpo sob o signo teatral. As dores de Frida, suas vivências, são, então, emaranhadas na palavra, mas também em uma corporalidade que resiste e denuncia por meio de sua fisicalidade simbólica. Desde o aparecimento da personagem em cena, em uma cadeira de rodas, percebe-se a fragilidade não como impeditivo, mas como força. Força que se espraia para as próximas cenas, na modificação corpórea que a atriz realiza em cada fase da vida da pintora, sempre em relação com o texto que convida-nos a pensar sobre determinado aspecto de seu relato. Sob este prisma, a revolução do título está, por certo, nas justaposições históricas do termo, mas também nas rupturas cotidianas que são necessárias para o rompimento de ciclos violentos contra sujeitos historicamente subjugados.

Alguns aspectos técnicos da obra, neste sentido, merecem ser ressaltados não apenas pela sua qualidade, mas também por abrir uma frente interessante no que tange às ponderações supracitadas. O primeiro aspecto que podemos ressaltar é a escolha dramatúrgica - compreendendo aqui, sobretudo, o seu âmbito fabular - pela relação de Frida com três homens distintos: seu pai Guillermo Kahlo, seu marido Diego Rivera e Leon Trótski. Retratados em pinturas que dialogam com a ação da atriz em cena - as pinturas, a propósito, conduzem esteticamente o espetáculo - tais personagens apresentam fragmentos da vida da artista mexicana por meio dos arrolamentos éticos e políticos que travaram com ela ao longo dos anos. É importante destacar, porém, que o protagonismo de Frida é sempre ressaltado, mesmo nas situações mais adversas pelas quais passou com estes homens. É salientada a importância de cada um deles em sua vida, mas também são evidenciados os lugares de poder que ali se fizeram.

Outro aspecto técnico importante nesta assepsia dramatúrgica, é a relação da atriz com o público e consigo mesma na envergadura cênica que solidifica a complexidade desta dramaturgia. Há uma intersecção histórica entre passado e presente, entre Frida e todas as mulheres que vieram antes e depois dela, cada vez que a atriz abandona o palco e dirige-se à plateia - apenas para citar um exemplo. E esta intersecção existe porque Frida - ou a própria atriz, dependendo do ângulo que se vê - transita no meio do público tecendo comentários sobre tudo aquilo que não devemos aceitar: a exploração, as opressões, o preconceito, o ódio ao outro e, principalmente, às mulheres - que não são iguais e possuem necessidades específicas a partir de seus demarcadores sociais.

Deste modo, Frida materializa-se em cena cada vez que a atriz troca de roupa - a indumentária situa historicamente a narrativa, apontando as diferentes fases na vida da artista - ou usa um novo registro vocal para expressar um estado específico da personagem, mas provoca o olhar para as urgências do nosso tempo ao tecer um discurso que desloca a própria noção de uma temporalidade estática, permitindo ao público voltar-se para o passado e conversar com a vida e a obra da artista a partir da atualidade.

É importante dizer que a direção sóbria de Daniel Colin colabora muito para isso, mas é a performance de Juçara Gaspar que arremata e solidifica esta proposta no aqui e no agora da encenação. Tem-se, portanto, uma direção que sabe de seu lugar neste aparato cênico: fazer o necessário para potencializar a imagem de Frida e da própria atriz em cena, a fim de que todo o campo reflexivo produzido no cerne da dramaturgia possa florescer e frutificar junto ao público. Não por acaso, também a excelente trilha sonora original composta e executada ao vivo por Luciano Alves age neste sentido, potencializando a força que foi Frida Kahlo, bem como a força que é a própria atriz em cena - inclusive na relação estabelecida entre ambos no palco. Não se trata, todavia, de hierarquizar uma função sobre a outra, mas de identificar um projeto coeso, onde todas as funções caminham para um mesmo fim.

Albert Camus já nos dizia que só há sentido para a existência humana por meio da revolta. Sem revolta, não há movimento. Sem revolta, vigora o absurdo no mundo. Também Frida enunciou isso ao dizer: “Preciso lutar com todas as minhas forças para que as pequenas coisas positivas que minha saúde me permite fazer sejam direcionadas para a revolução, a única razão real para viver”. Revoltar-se, nos diz Frida Kahlo: À Revolução, é fundamental para transformar um mundo que não é, mas está sendo. Para transformar desigualdades que não são naturais, mas naturalizadas. E o trabalho de anos da Cia Dramática nos mostra que, se a arte não pode mudar radicalmente o mundo, como muitos dizem, pode, pelo menos, modificar as percepções enraizadas que temos sobre ele. Pelo menos. Porque, certamente, ela pode muito mais.