NOVOS VELHOS CORPOS
Consuelo Vallandro, Porto Alegre (RS), 26/11/2023
Espetáculo aborda tema bastante espinhoso, principalmente, para quem é da área da dança : a velhice.
Foto de Marian Starosta

Novos Velhos Corpos: a idade é um privilégio

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

A aposentadoria em nossa sociedade ocidental e de mentalidade colonizada e capitalista é um tema bastante complexo, que perpassa camadas diversas, as quais atravessam desde a complexa balança dos problemas financeiro-previdenciários até a densa reflexão existencial sobre o sentido da vida. Diante de nossos valores sociais, em uma cultura que exalta cada vez mais a produtividade (sobre)humana enquanto foge e nega a doença e a finitude naturais ao ser vivo, que espaço – e “utilidade” – há para aqueles que não conseguem trabalhar e produzir como antes? Infelizmente, mesmo diante da extensão de expectativa de vida, com um número cada vez maior de pessoas passando dos seus setenta anos, em nossas práticas semióticas cotidianas seguimos reforçando estereótipos de hipervalorização da juventude, da novidade e do alto desempenho físico enquanto fomentamos o descarte e o apagamento de tudo o que é “velho”, termo que já em si carrega um tom pejorativo e essencialmente etarista.

Não escapamos deste viés nem mesmo na seara das Artes, que por si deveriam transcender a visão utilitarista que o ser humano despeja sobre si mesmo. Na verdade, encontramos entre aquelas que trabalham diretamente com o corpo como matéria-prima – as Artes Cênicas, por exemplo, principalmente o circo e a dança – um sistema e um mercado que condenam à exclusão dos palcos aquelas pessoas que ultrapassaram a faixa etária da alta performance. Assim, de forma muito semelhante ao que ocorre no esporte, assistimos a bailarinos e acrobatas sendo retirados da cena logo depois de passarem dos 40 anos, por perderem gradativamente atribuições físicas como força, flexibilidade, agilidade e equilíbrio.

A fim de pautar essa questão dentro do âmbito da dança, nasceu das mãos da bailarina, coreógrafa e professora universitária Suzi Weber o projeto hoje intitulado Novos Velhos Corpos 50+, o qual, aliás, não é tão jovem assim. Trata-se de uma pesquisa que já vem sendo desenvolvida há mais de dez anos e teve diversas ramificações, tais como o projeto de extensão “Dança, Escuta e Longevidade, sempre em torno deste campo bastante espinhoso para quem é bailarino, principalmente no âmbito do balé clássico, mas também com fortes – e lamentáveis – reverberações em sujeitos da área da dança que se diz contemporânea: a velhice.

Para uma pesquisa, em 2019, Weber e Mônica Dantas, ambas professoras da UFRGS, convidaram a coreógrafa Eva Schul, os bailarinos e coreógrafos Eduardo Severino e Robson Duarte e a fotógrafa e bailarina Lu Trevisan para um ensaio fotográfico a fim de refletir sobre idade, longevidade e vulnerabilidade na dança a partir de suas narrativas pessoais. O ensaio resultou em um artigo acadêmico intitulado I am/We are: Contemporary dance, somatics and new older body, assinado por Weber em 2020. A partir deste primeiro encontro, outras ideias floresceram e duas coreografias foram criadas: uma em grupo, I am / we are: new old bodies; e um duo chamado Ensaio para maca e outros pontos, concebido e realizado por Robson Lima e Suzi, apresentado em agosto de 2019 e gravado em formato de vídeo-dança em 2020. Ainda durante a pandemia, período em que o grupo social dos idosos foi um dos mais afetados, foram concebidos vídeos solos com os convidados, e em 2022 o projeto realizou, além de oficinas e debates com foco na maior idade, uma instalação combinando linguagens da cena com mídias visuais no Centro Cultural da UFRGS, com participação do multiartista Alex Sernambi como diretor de fotografia na criação dos vídeos, do diretor teatral Lisandro Bellotto na instalação e do músico mineiro Neném Menezes, o qual assinou a trilha sonora, além de Bathista Freire, que cuidou da iluminação.

O embrião do espetáculo surgiu a partir deste evento universitário presencial multimidiático, alimentado pela própria necessidade deste coletivo de continuar a dançar nos palcos e aprofundar o debate respeito das forças e fragilidades de seus novos corpos velhos que têm tanto a dizer. Então, completou-se um dream team 50+: para costurar as coreografias e os vídeos, explorando a potência das relações entre aproximações, afastamentos e jogos por eles provocados em cena, foi chamada a diretora teatral e professora do Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS Cláudia Sachs, enquanto Flavio Santos (Flu) compôs a trilha sonora de luxo, a qual ele executa ao vivo junto a Dora Ávila, Marcelo Fornazier e Vasco Piva. Eis que nasceu uma obra que com certeza marca a história da dança do Rio Grande do Sul, a qual, assim como seu elenco, segue amadurecendo a cada apresentação.

Esta obra demonstra que, independentemente da idade, do formato, do número de linhas de expressão e da formação e treinamento que recebe, todo corpo tem potência para estar em cena. Assistindo a estes bailarinos e bailarinas e observando cada um com seu caráter peculiar, demarcado também pela cor diferente do figurino, por vezes nem percebemos que estes corpos foram também moldados pelas dores que carregam consigo, muitas das quais são inevitáveis. São (somos todos) esculturas vivas talhadas pelas provações físicas inerentes à própria vida: aos 50 anos, é quase impossível não ter passado por lesões e doenças, imaginemos então após os 70. Por isso, Eva Schul, a grande Mestra e bailarina mais experiente do grupo, é a prova viva de que o essencial na dança é potencializar o próprio gesto expressivo, que não tem idade, e levar com orgulho à baila o seu corpo tal como é, esculpido pelos caminhos que encontrou para se fazer e se manter dançante. 

É sobre essa ruptura de paradigmas que se desenham uns aos outros e a si mesmos os Novos Velhos Corpos, que dançam sobre um piso de faixas brancas semelhante ao linóleo usado em espetáculos de dança. O objeto cenográfico principal é a maca de massagens, que se transforma ao longo das cenas juntamente com a composição das projeções junto às coreografias, fundamentalmente ancoradas na dança contemporânea e em improvisações estruturadas, com perspectivas poéticas concebidas para friccionar os rótulos geracionais. Em cena, vemos plenos os corpos de Eva Schul, 75 anos; Eduardo Severino, 60; Mônica Dantas, 55; Robson Lima Duarte, 60; Suzi Weber, 58 e Rossana Scorza, 56. Eles bailam em duos, trios ou em grupo, usando e abusando das múltiplas cores de seus figurinos – e até da troca destes – para compor imagens artísticas de resistência e esperança. São novos velhos dançantes que provocam uma empatia do público e o conduzem a celebrar a longevidade dos bailarinos e bailarinas no palco, onde, tensionados os “velhos” rótulos geracionais, a idade e a vulnerabilidade são relativizadas na e pela dança e, por consequência, na própria vida.

A atuação de Eva, o duo da maca e a performance coletiva final – que não vai ser aqui descrita para que não nos acusem de spoilers – são pontos altos do espetáculo. Também é brilhante a performance dos músicos, que auxiliam a compor a dramaturgia das cenas e as brindam com um ambiente sonoro sofisticado e talhado em harmonia plena com seu tom adotado. Não à toa, o espetáculo recebeu inúmeras indicações e culminou vencedor do Prêmio Açorianos de Dança 2022 de Melhor Espetáculo e do Prêmio Especial do Júri pela atuação de Eva Schul.

Ao fim do espetáculo, após a cena final apoteótica e catártica, é praticamente impossível o espectador não se engajar nesta rica celebração do corpo em envelhecimento tanto na dança como na vida. Sabemos que a aceitação dos “velhos” ainda é algo “novo” em nossa sociedade, que segue enaltecendo a eterna juventude. No entanto, se olhássemos pelo prisma da sabedoria que nos trazem nossos povos originários, veríamos que nossos anciões e anciãs trazem consigo marcada em seus corpos a força de sua caminhada, e que cada um ali no palco pode e deve seguir o seu caminho de vida escolhido mesmo na maturidade, permanecendo – literalmente sem sair de cena – nos espaços que conquistou e onde construiu sua trajetória enquanto artista. Afinal, estes são corpos novos e velhos ao mesmo tempo, porque estão de fato em processo de contínua e eterna transformação e amadurecimento, mas trazem na sua presença e em seus gestos o testemunho da própria história. Cada um deles (e de nós) é permeado ao longo dos anos da vida por uma incessante busca de novas percepções e posturas, mas fundamentalmente de circuitos ainda inexplorados a fim de melhor viver e assim (re)existir. A idade é o privilégio daqueles que de alguma forma os encontram!