CUCO: A LINGUAGEM DOS BEBÊS NO TEATRO
Thiago Silva, Porto Alegre (RS), 24/09/2023
Espetáculo insere os bebês em um contexto amplo de apreciação artística que vai além do jogo lúdico
Foto de Tom Peres

Sobre infância, homens e bebês 

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

Escrevendo e dirigindo espetáculos voltados para a infância e juventude, sempre questionei-me, ao pesquisar essa linguagem e suas possibilidades no campo cênico, sobre os meandros pelos quais cada faixa etária caminha na absorção e compreensão daquilo que se vê, se ouve, se experencia. Isso porque, a cada nova etapa cognitiva na vida de uma criança, abrem-se percepções e comunicações distintas com o mundo que as circunda, de modo que este ou aquele espetáculo será, dadas as circunstâncias, mais ou menos indicado para cada idade. Isso significa que, no universo específico do Teatro voltado para as infâncias, é necessário sempre estar atento ao vínculo estabelecido entre o conteúdo e seu receptor, com vistas a articular, de forma criativa, a ludicidade tão importante no processo de experiência e aprendizagem nesta fase da vida, com o cuidado constante de não subestimar a criança, percebendo-a como um indivíduo inteiro, responsável por apreender e construir a sua própria leitura acerca do que está posto em cena.

Esta fruição em torno de diferentes aspectos do fazer teatral voltado para as infâncias, não obstante, coloca em xeque o próprio ato de apreciação da arte, que, sabe-se cada vez mais, que não importa a  classe, lugar ou idade pré-estabelecida do espectador (a), ela se arquiteta no exercício constante de consumir produtos artísticos. Para tanto, faz-se necessário que estas criações existam, para que o contato com a produção artística possa ser possível desde a mais tenra idade. Ao pensarmos nessas questões, podemos afirmar que o espetáculo Cuco: A Linguagem dos Bebês no Teatro, da Cia Caixa do Elefante, se consolida como uma das produções mais importantes e diferenciadas no campo teatral gaúcho, tendo em vista que é, atualmente, um dos poucos espetáculos no Rio Grande do Sul voltadas para a faixa etária de 0 a 3 anos.

A importância e a relevância de Cuco, a propósito, reside em muitos aspectos. No terreno estético, sua moldura produz um efeito lúdico que cativa e fascina o seu público alvo de imediato, com uma poética delineada a partir de uma pesquisa que leva em consideração o desabrochar para o mundo nessa fase da vida. Em uma arena acolchoada, os bebês e seus cuidadores experimentam uma vivência brincante por meio de tecidos coloridos e esvoaçantes, bolinhas de diferentes cores e tamanhos e objetos diversos que transformam-se no corpo dos atores para edificar, no centro da arena, pequenas histórias e situações, postuladas a partir do jogo estabelecido entre o esconder e o revelar - já conhecido e tão apreciado pelos pequenos espectadores.

Nesta assepsia entre o lúdico e o dramático, o espetáculo insere os bebês em um contexto amplo de apreciação artística, possibilitando um contato que vai além das práticas de ludicidade e descoberta que este público poderia ter no âmbito familiar, uma vez que consegue alinhavar vários destes elementos de modo híbrido no espaço cênico. Há, nesta configuração, além da esfera dramática, um emaranhado coreográfico e de técnicas circenses que intensificam esse processo complexo e heterogêneo de apreciação, conduzido de maneira ímpar pelos atores Eduardo d’Avila e Gabriel Martins. No centro do palco, os dois intérpretes usam seus corpos de forma múltipla, sempre pontuados, corporalmente, pela trilha sonora sensorial de Marcelo Delacroix e Beto Chedid, estimulando, assim, o jogo de descoberta e o horizonte de imaginação dos bebês.

Dividido em duas partes, Cuco surpreende por conseguir, como supracitado, costurar o universo teatral ao cotidiano dos bebês. Em um primeiro momento, os pequenos espectadores assistem ao espetáculo no colo de seus cuidadores, sendo levados pelos dois intérpretes a um mundo de sensorialidade dramática que é criado e reconfigurado por meio da atuação, da dança e do circo, no entrelaçamento destes campos com o uso engenhoso dos objetos dispostos na cena. Na segunda parte, os bebês podem invadir o espaço cênico e relacionar-se com os materiais ali colocados, em um grande desbravamento de sua própria constituição enquanto partícipe deste processo. Durante todo o percurso, contudo, os dois intérpretes permanecem alertas e empáticos a este público, mediando estes dois momentos que se completam e se retroalimentam.

Este é, aliás, outro aspecto de imensa relevância no trabalho: o fato de dois homens estarem ali, na centralidade da ação, brincando, sugerindo, jogando com um público específico, para o qual o afeto masculino é, muitas vezes, negligenciado; ou, colocando por outro viés, ocupando um espaço que, socialmente, pode ser encarado como um lugar designado ao feminino. Não raro, ouvimos que são as mulheres as responsáveis pela educação infantil, e, se observarmos as escolas e as instituições por onde as crianças transitam no dia a dia, veremos que a realidade, de fato, pode corroborar este discurso, este imaginário e estas representações. Todavia, não existe nada de natural na estruturação desta realidade, e,  assistir dois homens no bojo de um trabalho pleno de cuidado e afetividade para com bebês, é algo extremamente positivo. Homens e mulheres são os responsáveis.

Somando-se a este deslocamento de gênero no cerne do espetáculo - que não está dado de modo literal ou notadamente dramatúrgico, mas que torna-se significativo no agrupamento coletivo com os demais elementos - tem-se o cuidado com a produção e a pesquisa que desemboca no que assistimos. Pois, se a projeção discursiva de Cuco passa pela afetividade do masculino como um potencial de discussão amplificada, que engendra uma observação mais saudável da presença de homens e mulheres nesta fase da vivência infantil, também a sua concepção pedagógica estabelece um pensamento a respeito do que se faz - e de como se faz - que orienta o olhar, criticamente, do início ao fim da experiência cênica. Neste sentido, antes mesmo de iniciar o espetáculo, adentramos uma sala de espera onde estão dispostos uma série de brinquedos que os bebês e seus cuidadores podem usufruir da maneira que quiserem. Esta ideia, por exemplo, revela uma escuta ativa de um projeto comprometido com a totalidade de sua execução, levando em consideração os fatores que englobam as necessidades de seu público alvo.

Há escuta, também, na direção consciente e precisa de Mário de Ballentti, que consegue trazer para a cena toda a potencialidade do elenco, em confluência com a sua própria autoria. É nesta interface criativa, inclusive, entre a autoria do diretor e a autoria dos dois intérpretes que Cuco dimensiona ainda mais a força de sua composição dramatúrgica. E aqui, especialmente, percebemos a dramaturgia como um fio condutor que organiza a ação na cena, alargando o próprio uso do conceito ao mostrar que é possível criar, dramaturgicamente, para qualquer idade. E, mais do que isso: é possível perceber a dramaturgia, neste espetáculo, como um enredo que consegue gerenciar toda a compleição do trabalho, desde as poucas palavras ditas pelos atores, até as brincadeiras, o jogo, a manipulação de objetos e o aspecto sociocultural que encontra-se por trás do que se percebe de imediato.

Por fim, observar os bebês enquanto assistimos a peça é um espetáculo à parte. O fascínio do bebê fascina o adulto. O movimento do bebê movimenta o adulto. A presença do bebê presentifica a infância pretérita do adulto. Sorrisos, sons e olhares curiosos mesclam-se com a ação dos intérpretes em um grande pacto entre artista e público, mostrando que não importa a idade ao qual o espetáculo é destinado, esta relação entre o palco e a plateia é o que dá sentido ao que fazemos enquanto artistas de Teatro - e Cuco consegue tecer um sentido tão belo quanto necessário.