ESPERA
Pedro Bertoldi , Porto Alegre (RS), 24/09/2023
No espetáculo da Cia Incomode-te acompanhamos Sumô e Serrote, que confabulam sobre como resistir no "não-lugar" onde vivem
Foto Vilmar Carvalho

O que é que estamos esperando?

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

Me fiz essa pergunta assim que as luzes que iluminavam o espetáculo Espera, da Cia Incomode-te, se apagaram e os aplausos calorosos pipocaram pelo recém inaugurado Teatro Oficina Olga Reverbel em Porto Alegre. O que estamos esperando? O que falta para a gente arregaçar as mangas e ir à luta para nos defendermos dos ataques que estamos sofrendo?

Em Espera, dramaturgia de Nelson Diniz e direção de Sandra Possani, acompanhamos Sumô e Serrote, dois ninguéns que confabulam sobre técnicas de resistência contra a desocupação do não-lugar onde vivem para a construção de uma estrada que não levará para lugar nenhum.

Uso o termo ninguéns e não-lugar para me referir aos protagonistas e à ambientação da narrativa porque é aí que reside um dos grandes trunfos deste espetáculo: ele fala desse lugar subterrâneo, sujo e sem qualquer luz para onde nossa sociedade empurra os ninguéns, que, como diz Eduardo Galeano, valem menos que a bala que os mata.

Os ninguéns, os que não têm voz e que, por isso mesmo, têm tanto a dizer. Serrote e Sumô dizem muito, mas às vezes de forma tão desesperada e confusa que quase não entendemos o que eles dizem. Problema nosso, afinal, o que eles estão dizendo está aí pra todo mundo ver. Basta andar nas esquinas de qualquer grande cidade pra ver quantos empreendimentos ultramodernos e sofisticados, com suas lâmpadas estilo hipster estão se multiplicando e uniformizando as paisagens urbanas, apagando qualquer traço de originalidade e empurrando os ninguéns contra a parede, para fora dos limites da cidade.

A dramaturgia de Nelson Diniz se aproveita dessa problemática mais do que atual para viajar sutilmente por grandes clássicos da dramaturgia universal e brasileira. Estão lá referências a Shakespeare, Beckett, Dias Gomes, Ionesco… e quantas mais? Mais um ponto para a dramaturgia bem urdida que acrescenta uma camada a mais de diversão para quem, assim como eu, gosta de ir buscando as referências que compõem a narrativa de um espetáculo.

Outro ponto que merece destaque é o elenco, formado por Diniz e Liane Venturella. Liane é um assombro em cena! Fico sempre impressionado com a capacidade que ela tem de se metamorfosear em seus personagens, anulando-se e ficando praticamente irreconhecível na pele deles. Alguns poderão dizer que é esta a função da atriz e, sim, eu concordo, mas não são todas que conseguem atingir este nível de entrega. Liane compreende o personagem, diverte-se na construção dele, inquieta-se na busca pelos mínimos detalhes e, não à toa, todo esse esmero transparece.

Nelson Diniz apresenta uma atuação mais comedida, mas não menos eficiente. Sua capacidade de ir a fundo na psicologia do personagem, entendendo cada traço da personalidade dele e transformando todo este milimétrico estudo em gestos coerentes à figura que interpreta fazem com que ele crie uma eletricidade poderosa em torno de si e magnetize os olhares da plateia.

Os aspectos visuais e sonoros do espetáculo são também dignos de nota. O cenário criado por Carlos Ramiro Fensterseifer é simples e funcional, mas cheio de signos que reforçam este não-lugar: as quinquilharias, os eletrônicos estragados, as sucatas, todos os elementos escolhidos reforçam a condição desses personagens: esquecidos, perdidos, presos no gancho do açougue como carne barata, refugos dessa máquina de moer gente em que a nossa sociedade tem se transformado.

A iluminação, a cargo de Ricardo Vivian, é muito bem utilizada dentro desse contexto: está ali, mas é quase como se não existisse, ou melhor, como se não pertencesse àquele universo e, dessa forma, os personagens precisassem roubá-la. Ela chega de forma indireta, como se as luzes de um grande edifício refletissem por acidente naquele não-lugar – um caso excepcional de elementos visuais que são tão bem casados à narrativa que criam uma dramaturgia paralela.

Assinada por Felipe Zancanaro, a trilha lida muito bem com o caráter de estranheza que o espetáculo abraça. Os elementos sonoros criam uma atmosfera intensa e imersiva, acentuando a estranheza e o mistério que permeiam a trama. A mistura de sons e instrumentos incomuns, associados a técnicas modernas de manipulação sonora, fazem da trilha uma verdadeira viagem para os sentidos.

Para além de todos esses elementos acertados do espetáculo, é preciso citar um em especial: a direção segura e bem conduzida de Sandra Possani e o reencontro com Liane e Nelson após vinte anos do espetáculo Aquelas Duas, que Nelson dirigiu e as duas atuaram. Pra quem acompanha o trabalho desses artistas, seja na Incomode-Te ou em outros grupos, assistir a este novo encontro do trio tem também uma camada extra, uma ligação afetiva muito bem-vinda a um espetáculo que pretende também celebrar os 15 anos da companhia.

Por falar nisso, é muito interessante como Espera resgata a memória de diversas passagens da companhia, com diversas autorreferências: tem um quê de A Vida Dele (2014), passa um pouco por O Gordo e o Magro Vão para o Céu (2008), principalmente na relação entre os dois personagens, e também traça uma linha direta com Movimentos Sobre Rodas Paradas (2014).

Aliás, é nítida a diferença no tom dos dois espetáculos. Enquanto Movimentos Sobre Rodas Paradasapresenta um tom mais cotidiano e engraçado, mesmo falando também da ocupação desenfreada do neoliberalismo e como isso impacta fortemente a vida de pessoas comuns, Espera apresenta uma melancolia, uma desesperança. Também, pudera, após quatro anos de um governo neoliberal, atravessados por uma pandemia mortal que revelou o pior da raça humana, há esperança que resista?