ESPERANDO RODÅ
Consuelo Vallandro, Porto Alegre (RS), 24/03/2023
Espetáculo circense é o resultado da residência artística realizada pela dupla Carina Ninow e Gabriel Alves Gomes junto ao Coletivo Bravos no RJ
Crédito Sabrina Mesquita

Do amor às ruas sobre o palco

O espetáculo circense Esperando Rodå foi uma das atrações de circo na ampla e variada programação do Festival Porto Verão Alegre de 2023. A obra da dupla Gomesninow (RJ/RS) esteve em cartaz por dois dias no Teatro do Sesc, no centro da capital gaúcha. Este fato merece um reconhecimento à organização do Porto Verão Alegre, já que é incomum a participação de espetáculos de circo em grandes festivais de artes cênicas.

Nessa oportunidade, a dupla composta por Carina Ninow e Gabriel Alves Gomes, que vem trabalhando muito com performances de rua e de eventos, estreou em Porto Alegre o seu espetáculo de sala, muito apropriadamente batizado de Esperando Rodå – homenagem dada a figura central da roda, que se delineia física e metaforicamente de diversas maneiras na obra. Não à toa, percebe-se uma natureza um pouco diferente neste espetáculo. Este é o resultado da residência artística realizada pela dupla junto ao Coletivo Bravos no Polo Carioca de Circo Casa Escola Benjamim (Teatro de Anônimo), patrocinada pela prefeitura municipal da capital carioca – fato também necessário de ser ressaltado, pois as políticas públicas para o circo, principalmente para ações de formação, são escassas no Rio Grande do Sul. O resultado se mostra no diferencial de se ter toda uma equipe de trabalho a pensar o espetáculo (e não apenas um ou dois artistas tendo de se virar e pensar em tudo: cenário, figurino, dramaturgia, etc – fato comum no universo de espetáculos circenses), e na marca da direção de João Carlos Artigos, diretor carioca fundador do grupo de teatro de rua Teatro de Anônimo, que já conta 35 anos de (r)existência. Assim, abusando dos trocadilhos, podemos dizer que vemos uma obra redonda, que gira e se desenvolve em torno de uma única temática do início ao fim de seu ciclo.

Uma das questões que mais chama a atenção no trabalho de Carina e Gabriel é que ele se realiza no teatro, mas não deixa de trazer a atmosfera da vida do circense na rua em vários momentos. Sem praticamente nenhuma fala na maior parte do espetáculo, os dois, com a expressão e linguagem corporal, comunicam seus sentimentos um ao outro e à plateia. Em meio a um cenário minimalista com um tom cubista composto por finas hastes de alumínio, assistimos a estes dois artistas que rodam o palco e metaforicamente o mundo sobre duas rodas, em uma pequena bicicleta, e vemos estripulias acontecerem com a dupla, que apresenta um uso bastante autêntico de um equipamento oriundo dos novos esportes radicais urbanos. Assim, o chamado o BMX Flatland é uma modalidade tão plasticamente encantadora, com seu uso em acrobacias, saltos e equilíbrios realizados em espaços pequenos, que nem parece à plateia leiga que seu berço não foi o picadeiro.

No entanto, depois de vermos por um bom tempo estes dois encantadores personagens rodarem e rodarem por estas quadradas cidades de ferro construindo seus sonhos e peripécias, ocorre uma perda quase irreparável: "cai" de seu equipamento de trabalho e transporte uma das rodas. Esta quebra abrupta na dinâmica do movimento contínuo que tecia a narrativa do espetáculo faz com que aquele mundo de sonho pare, entre em suspensão e até o tempo parece parar. A partir desse momento de ruptura dramática, em busca da roda perdida, vêm à cena uma outra poética. A busca pelo preenchimento deste vazio gera outras formas, outros números, e até o cenário se transforma em cubo de equilíbrio para ser manipulado e rodado diante de público. Assim se desenrolam técnicas diversas que vão da música cantada ao vivo ao equilibrismo, a acrobacia em dupla, e até uma cena hilária em corda lisa – rara combinação de acrobacia com a comicidade. Vemos os personagens, em diálogo direto com o público – como se faz nas ruas – transitarem entre a euforia, a tristeza, a resignação e a alegria, até chegarem ao circuito final do espetáculo: o número de Roda Cyr, técnica em que os acrobatas manipulam e giram dentro deste grande aro metálico, que circunda o palco em alta velocidade.

Não tenho certeza de que é possível dizer que existe um ponto final ou um apogeu neste mundo rodado da dupla Gomesninow, que circunda e roda metaforicamente a própria vida mambembe, num ciclo infinito de ir e vir permeado pela eterna busca de um “se-virar” e encontrar saídas com o que se tem. Esta chamada “estética da precariedade” é marca das ruas, tanto para os artistas quanto para os bravos atletas do BMX, que encaram a urbe tal como ela é para fazer a sua arte e literalmente tiram leite de concreto. Por essa razão, afirmo que um dos pontos altos foi o final, quando, durante a última performance de Gabriel, Carina surpreende ao trazer uma qualidade bem rara entre os artistas circenses e desenvoltamente desenvolve em alto e bom tom um monólogo acerca da arte de rua. Neste momento, ela pontuou a importância simbólica de se passar o chapéu pela plateia, mesmo que já tenha pago um ingresso. Foi a mais bela afirmação e enaltecimento desta prática de troca que é milenar, a valorização financeira espontânea que sustenta a arte de rua, a que já assisti – ironicamente ou não, feita sobre um palco. Mas o mundo de fato gira, e logo estaremos nas ruas novamente cruzando com um palhaço, um acrobata ou um malabarista, e então espero que esta plateia traga à mente a recordação deste espetáculo de palco para levar as mãos aos bolsos e manter vivo mais um espetáculo de rua.