FESTIVAL DE TEATRO DE GRAVATAÍ
Thiago Silva, Gravataí (RS), 15/12/2022
Dedy Ricardo traz ao palco histórias, referências e memórias que nos remetem à ancestralidade africana
Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

Que histórias não nos contaram?

Lembro-me que, quando eu cursava História, uma professora nos perguntou sobre as nossas lembranças da infância em relação as histórias que envolvessem personagens negras. Estávamos na disciplina de História da África e a atividade em questão tinha como objetivo refletir sobre nossas referências acerca do continente africano - ou a ausência delas. Não obstante, a proposta de nossa professora evidenciou algo que já era bastante evidente naquele ano de 2010: no que tange à construção historiográfica, algumas histórias são contadas, outras silenciadas. Algumas histórias são oficiais, outras são vistas como “exóticas”. Algumas histórias estão nos livros didáticos, outras não. Deste modo, era nosso dever enquanto professores e professoras de História, dizia ela, refletir e subverter essa realidade. As histórias existiam. As personagens existiam. Elas só precisavam ser vistas. E narradas.

Recordo-me também que, até aquele momento, pouco ou nada eu sabia sobre o continente africano e sua imensa riqueza política, social e cultural. Isso porque, como tantas outras crianças, eu havia crescido com uma parte da História me sendo negligenciada. Nas aulas do Ensino Fundamental, por exemplo, os processos de colonização eram explicados apenas por um viés: o do colonizador. Também as mãos que haviam construído o nosso país e o nosso estado eram todas brancas. Os personagens, por sua vez, eram todos homens com feitos heróicos. Mulheres, negros e indígenas eram citados muito raramente, quase sempre em posição de escravidão, submissão e subalternidade compulsória.

O espetáculo Histórias negras para crianças de todas as cores, apresentado no 6º Festival de Teatro de Gravataí – FETEG, tensiona essa questão de uma forma lúdica e representativa, ao se debruçar sobre a contação de histórias no âmago de uma peça teatral para trazer as crianças outra perspectiva acerca das fábulas que lhes são apresentadas desde a mais tenra idade. Ao contar a história da menina Suma - que se perde em uma floresta e acaba caindo nas mãos de um feiticeiro - o trabalho engendra outros olhares sobre a produção cênica destinada à infância e juventude, trazendo para a cena uma dramaturgia que não apenas fala sobre o continente africano, mas nele constrói toda a sua linha de ação narrativa.

Neste sentido, ainda que o trabalho seja totalmente calcado na atuação de Dedy Ricardo - que prende a atenção das crianças do primeiro ao último segundo de peça - e não possua grandes recursos de encenação para contribuir esteticamente no que é construído, a atmosfera é plenamente instaurada devido ao jogo estabelecido entre a atriz e o público. É a partir dele que a lógica propositiva da cena se consolida e é, por meio dele, que a história avança em suas estratégias de ludicidade e reflexão. Por este caminho, ao transitar por dois pólos dramatúrgicos - o da narradora que orienta as crianças pela fábula e o das personagens que fazem parte do universo narrado - a atriz traz ao palco histórias, referências e memórias que nos remetem à ancestralidade africana, conduzindo as crianças por lugares outros, tecendo e possibilitando outras experiências que não a experiência branca, tão impregnada nas narrativas infanto-juvenis produzidas até então no sul do Brasil.

Essa proposição tem em seu cerne o aspecto atmosférico da dramaturgia como ponto central da ação. É através deste aspecto que Dedy Ricardo costura todas as referências culturais envoltas na voz de uma mulher negra, postulando uma ressignificação narrativa da cena por meio de diferentes elementos presentes em sua atuação. Sendo assim, seja no seu trabalho vocal - é especialmente interessante o momento em que a atriz canta e a transição de voz entre Suma e o feiticeiro O'Baio -  seja na composição de sua corporalidade cênica, temos a presença de gestos, movimentos, sons, olhares e demais minúcias interpretativas que evidenciam um imenso cuidado com essa via atmosférica do espetáculo - que nos transportamos para a África e nela acompanhamos o desenrolar da história no palco.

Também a trilha executada ao vivo por Ricardo Pavão contribui para que os elementos atmosféricos se solidifiquem a cada cena. Sendo assim, os barulhos da floresta que suma entra, o ronco do feiticeiro, o menino transformado em passarinho falante - representado por uma flauta - e outros sons diegéticos da dramaturgia mesclam-se com a música que acompanha e metaforiza a narração da atriz no bojo do continente africano que se materializa na cena. Outro ponto importante, nesta direção, são os áudios que representam a aldeia africana que Suma mora com sua mãe. Desde a voz da amiga de Suma, que adverte ela sobre a entrada na floresta onde vive o feiticeiro O'Baio, até os sons característicos da própria aldeia, as sonoridades sugerem uma ambientação que leva o público para onde a história se passa. E, não por acaso, esses sons também circunscrevem aspectos identitários e de pertencimento a um lugar geograficamente e culturalmente demarcado, e mais uma vez evidenciando e dando visibilidade a outro padrão narrativo no teatro infanto-juvenil gaúcho.

Percebe-se que o espetáculo une diferentes recursos em torno de um mesmo objetivo: tudo o que se vê e se escuta em cena remete à qualificação e à visibilidade de outras histórias que precisam e merecem ser contadas. Destaque, acerca desta questão, é o arremate da história de Suma, quando ela se torna a primeira feiticeira de seu reino e passa a ajudar as pessoas de sua aldeia nas suas dificuldades cotidianas: ajudava as mulheres na hora do parto, sabia a hora de plantio e de colheita, curava doenças através de ervas medicinais, etc. A positivação de outros saberes e a possibilidade de ratificar outros conhecimentos, não à toa, também ratifica a importância de se ouvir outras histórias no teatro e fora dele. Negras. Amarelas. Vermelhas. Histórias que não nos contaram. Histórias de todas as cores.