FESTIVAL DE TEATRO DE GRAVATAÍ
Consuelo Vallandro, Gravataí (RS), 07/12/2022
Rococó propõe o resgate de cantigas populares brasileiras com a Commedia dell’Arte
Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

A mistura das culturas populares, entre formigas e cigarras

As culturas populares opõem-se conceitualmente ao que é chamado hoje de cultura erudita ou de elite principalmente por conta da sua origem – como o nome aponta – no cerne do povo, que produz in natura (e ativamente participa de) determinadas manifestações culturais próprias, as quais são em geral transmitidas de geração a geração. Todas as civilizações humanas tiveram, cada uma em seus tempos, suas culturas populares, as quais comumente distinguiam-se daquelas impostas por uma elite, por um governo ou por um colonizador. A Rococó Produções Artísticas e Culturais, que participou do Festival de Teatro de Gravataí em 2022, desenvolve desde seu surgimento em 2015 uma pesquisa neste campo: seu primeiro espetáculo, Era uma vez: Contos, Lendas e Cantigas, já contava com uma dramaturgia inédita de Guilherme Ferrêra baseada em elementos do cancioneiro popular gaúcho e da cultura afrodescendente.

A união da Rococó com a diretora Suzi Martinez para a montagem de As Aventuras de João, a Princesa e o Tapete Voador, também de autoria de Guilherme Ferrêra, trouxe para o grupo, que trabalha no teatro justamente com a mescla de técnicas de contação de histórias, bem como a dança e a música, um outro gênero teatral: a Commedia dell’Arte, um bom exemplo de cultura popular do Medioevo, que surgiu na Itália opondo-se ao teatro apreciado pela nobreza da Idade Média, e depois, dado o caráter mambembe das trupes, espalhou-se e estabeleceu-se em outros países europeus, como a França. A diretora, que já encenou Os Dois Gêmeos Venezianos, aceitou o desafio de beber nestas duas fontes, populares em períodos e lugares tão distintos, para criar a peça.

Talentos não faltam para compor essa mistura: a obra conta com a atuação do ator-autor Guilherme Ferrêra contracenando com Clarissa Siste e Henrique Gonçalves, o qual recebeu – dois dias depois da apresentação no FETEG – o merecido Prêmio Tibicuera de Melhor Ator por este trabalho. O texto de Guilherme Ferrêra, livremente inspirado no conto popular O Casamento de João Bobo e da Princesa Chifruda, em versos ilustra uma trama com a temática medieval, com direito a castelo, princesa e elementos mágicos, mas ao mesmo tempo propõe o resgate de cantigas populares brasileiras. Nesse prisma, o espetáculo segue confeccionando este encontro inusitado: de um lado, um cenário à la teatro mambembe com uma cortina aveludada, as máscaras do estilo veneziano, os figurinos e maquiagem de 11 personagens diferentes que remetem ao gênero medieval italiano; de outro, as canções populares brasileiras, costuradas à trama e rememoradas pela trilha sonora executada ao vivo em voz e violão pelos próprios atores, que se revezam de maneira muito fluída entre tocar, cantar e atuar.

Mas essa poção teatral traz outros ingredientes bastante instigantes e potentes. Fundamentalmente, existe uma musicalidade que vai muito além da trilha e permeia todo o espetáculo em muitos eixos: o texto, inclusive, apresenta uma métrica de versos digna dos grandes trovadores, e toda a movimentação dos talentosos atores, bem como suas falas, são minuciosamente cadenciadas e coreografadas. Destaca-se também a luz de Roger Santos e a beleza singela da composição feita para a cena do fundo do mar, criada de maneira simples, mas muito engenhosa. Soma-se a excelente capacidade de interação com o público, que poderia até ser mais explorado em improvisações à moda da própria commedia dell’arte, dado o domínio que quase instantaneamente foi obtido pelos atores sobre a empolgadíssima plateia de crianças.  

Umas das delícias desta mistura de gêneros é a narrativa feita sempre por um dos atores, enquanto os outros vão realizando o que é narrado, fazendo inclusive interlocuções com o narrador, o que compõe uma contação de história mais interativa. Nesse prisma, como o cenário é fixo, exceto pela cena do tapete voador – que é muito engenhosamente bolado para flutuar em meio às nuvens –, a construção dos diferentes ambientes frequentados pelos personagens funcionaria muito bem se operacionalizada pela própria imaginação das crianças, dispensando-se as projeções usadas ao fundo do palco, acima do cenário, que pouco dialogam com a visualidade da cena. Por outro lado, a temática das culturas populares brasileiras deixa um gostinho de “quero mais”: neste encontro da commedia europeia com a referência do cancioneiro popular nacional, a brasilidade poderia ir além da trilha e influenciar a composição geral do espetáculo. Afinal, se o que embala e costura o texto são canções como “Quem te ensinou a nadar”, “O cravo e a rosa”, etc, essa referência poderia permear também a visualidade da obra, em itens que compõem figurino e cenário, por exemplo.

Quanto à dramaturgia, que soa um pouco abrupta no encadeamento quando da apresentação e da resolução do problema final, uma ressalva importante: o texto acaba reforçando um estereótipo bastante prejudicial para os próprios artistas, ao sublinhar na figura de João, que gosta de cantar – e não de estudar, como seu irmão – o hábito de não ajudar tanto nas tarefas de casa e ainda depender das ajudas do irmão para viver financeiramente, perpetuando o mito da distinção entre cigarra (o artista) e formiga (o trabalhador), mesmo que de forma inconsciente.

Por fim, vale ressaltar que as culturas populares, como a commedia no seu tempo e o próprio cancioneiro das cantigas de roda, dado o seu caráter envolvente e acessível, carregam consigo uma beleza própria, a qual se mostra de certa forma atemporal, compondo-se em seu encontro a leveza desenvolta e transgênera de ser uma arte feita pelo e para o povo. Nesta tarde, o teatro do SESC de Gravataí foi tomado por muitas escolas, que atingiram a lotação máxima em suas cadeiras: lá havia cerca de 700 crianças. Com certeza, se depender desta primeira experiência, muitos dos pequenos então arrebatados vão desejar voltar ao teatro, garantindo-se assim a sobrevivência das formiguinhas da cena – aquelas que trabalham muito para este momento mágico em que podem se vestir de cigarra para encantar o público.

Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

 

A equipe do AGORA Crítica Teatral foi convidada pelo Festival de Teatro de Gravataí. A produção crítica faz parte do eixo Conexões Reflexivas.