FESTIVAL DE TEATRO DE GRAVATAÍ
Thiago Silva, Gravataí (RS), 29/11/2022
Peça El Juego de Antonia é apresentada em casas instaurando uma intimidade tácita entre artistas e espectadores
Andréa Seligman / FETEG Divulgação

Sobre medos, risos e sutilezas

Chego em uma casa no centro de Gravataí, cidade no Rio Grande do Sul para assistir uma peça presente na programação do VI Festival de Teatro da cidade. Me aproximo. Aparentemente não há movimentos típicos de um grupo que vai começar a apresentar o seu trabalho artístico. Há, por outro lado, uma profusão de vozes, toques, gestos e modos de estar que denotam uma troca cotidiana entre os presentes, como se aquele fosse um final de tarde corriqueiro e naturalmente compartilhado, íntimo a todos. Me aproximo mais. Adentro o espaço da casa. Lá, estão algumas pessoas sentadas em cadeiras, na escada e nos sofás. Converso com algumas. Observo outras. Pequenos grupos conversam entre si. Sentado em uma poltrona, na sala, está um senhor distinto, com um traje formal e semblante austero: é Virgílio.

Ele recorta fotos de revistas, as observa, e depois ascola em um palito. Posteriormente, ele as queima. Em um primeiro momento, não reconheço - e também não compreendo - a ação. Apenas a aceito como um traço claramente pertencente ao universo do espetáculo que se desenvolve. Troco alguns olhares com Virgílio, me divirto com seus sussurros iniciais - o que subverte a austeridade de minha primeira percepção - e me intrigo com o seu ato de recortar aquelas figuras. Busco uma explicação intrínseca a quem vai ao teatro colher sentidos, perguntas e significados. Acontece que nem sempre tudo se revela assim tão fácil. Nem tudo é significado e partilhado de imediato.

El Juego de Antonia, espetáculo baseado no texto Dos Viejos Panicos (1967), do autor cubano Virgilio Piñera, é um trabalho que desvela os seus elementos dramatúrgicos de uma maneira muito peculiar diante de nosso olhar espectatorial. Isso porque o espaço cênico foge do convencional - a peça é apresentada em casas e possui um caráter de itinerância, sempre moldando-se ao espaço doméstico no qual está sendo apresentada - e isso, por si só, já instaura uma intimidade tácita entre artista e espectador, uma vez que somos convidados a participar o tempo todo do que é narrado, mostrado e evidenciado em cena. Especialmente com a chegada de Antonia - interpretada por Luciana Paz, que possui domínio absoluto do público - já no início da peça, essa relação personagem/espectador se vincula e se solidifica. Antonia, casada com Virgílio, passa a conversar diretamente com as pessoas presentes na casa, sempre voltando-se, todavia, para o diálogo estabelecido com o próprio marido - uma figura que ora tangencia-se de forma concreta, ora espectralmente - no jogo entre ele e Antonia. Não sabemos se Virgílio está ali de fato. Se é real ou projeção. Se é todo ou fragmento. Se está vivo ou morto.

Essa sensação do desconhecido acerca de Virgílio torna-se ainda mais forte na medida em que ele vai afastando-se do nosso campo de visão, permitindo, desse modo, que Antonia estabeleça um canal de fala e escuta ainda mais íntimo com o público. Quando Virgilio desaparece fisicamente da sala - espaço da casa onde se concentra a maior parte da ação - após Antonia insistir na realização de um certo jogo, a produção de sentido da dramaturgia torna-se mais densificada e ainda mais profunda. Isso porque Antonia convida pessoas da plateia para jogar o “jogo da morte” com ela, em dois momentos cruciais para o arremate das questões sensíveis que a peça aborda. Matar e morrer, ouvir e dizer, ter medo e não deixar este medo tomar conta de nossas vidas, são apenas algumas destas questões. Mas não só. Há também aqui um olhar constante para dentro de si mesmo que, não obstante, permeia todas as cenas que fazem rir e emocionam na mesma medida.

Neste sentido, transitando entre o cômico e o trágico, a dramaturgia de El Juego de Antonia brinca com o improviso a partir de uma estrutura muito bem articulada na cena. Sérgio Lulkin e, sobretudo, Luciana Paz, se valem do aqui e do agora do acontecimento cênico sem, contudo, perder a linha narrativa tangível que guia a história de suas personagens. Não se trata, portanto, de um conteúdo improvisacional deslocado do aspecto dramatúrgico do texto, mas, antes, que ressalta as nuances, os detalhes e o caráter humano do mesmo. Assim, ainda que a peça gaúcha não mantenha o caráter essencialmente político do texto original de Virgilio Piñera - que escreveu Dos Viejos Panicos em um contexto histórico de golpes militares na América Latina e acirramento autoritário do regime castrista - suas inúmeras camadas de compreensão acabam por sustentar diferentes formas de apreender o que é posto para o público, que não é figura passiva em nenhum instante. Deste modo, ainda que haja uma modificação na estrutura proposta por Luciana Paz e André Carreira (que assina a direção da peça) em explorar outros espaços que não o palco italiano para a construção do trabalho, o âmbito do privado acaba por se tornar o próprio local de discussão daquilo que é universal - mesmo que sejam perspectivas oriundas de uma ordem profundamente pessoal.

O fato de o idioma falado pelas personagens ser o espanhol, ao invés do português, também tangencia o intercâmbio entre os aspectos cômicos e trágicos da produção. Do estranhamento inicial à proximidade com a fala, dos trocadilhos com o castelhano à atmosfera de intimidade que passa a suplantar qualquer dificuldade de compreensão linguística, somos catapultados para um jogo de palavras que nos obriga a ouvir, de fato, tudo o que se diz. E essa escuta aberta, afeita ao outro, faz com que ora o espectador gargalhe, ora se questione veementemente sobre o que está sendo posto, uma vez que estamos diante de algo que vai desvelando-se aos poucos não apenas na história contada, mas também na palavra dita por meio de outra língua. Não por acaso, esta proposição faz com que, ao término da peça, nos questionamos sobre a natureza da alteridade que se constitui em diferentes locais, situações e grupos societários: e se fosse em outro lugar, que não uma peça onde estamos sentados diante do ator e da atriz, ouviríamos este outro que fala, de fato? E se eles não fossem brancos? E se fosse outro idioma? E se eles estivessem dizendo outras coisas? E se?

Neste caminho de questionamentos e no tecimento entre público e privado que permeia todo o enredo, o medo da morte, da solidão ou de cair e se machucar, por exemplo, encontram-se com medos intercalados em uma estrutura mais macro histórica, como o medo do “22”, o medo do fascismo ou o medo da unanimidade - resposta que eu mesmo pensei enquanto outro espectador era questionado pela atriz sobre os seus medos. Ao pensar nessa resposta, pensei coletivamente sobre o medo e suas interfaces políticas e sociais, ao mesmo tempo em que ria dos comentários de Antonia sobre determinadas respostas que vinham da plateia. E não, isso não é mera coincidência: há um profundo sentimento de exclusão e pertencimento, de indivíduo e de multidão, de vida e de morte em tudo o que se diz e se faz em El Juego de Antonia. Não por acaso, a cena final - não a descreverei para que os próximos espectadores participantes possam ter a sua própria experiência - intercala inúmeros temas que transcendem a perspectiva daquilo que somos e das certezas que temos. Só há uma certeza na vida e acerca desta todos concordam.

El Juego de Antonia é destes trabalhos que intrigam, provocam e desafiam. É destes trabalhos que inovam a partir do simples que se agiganta na cena. É um trabalho carregado de sutilezas que emocionam pela simplicidade de sua execução e pela complexidade de suas ideias. Aqui não há artifícios: há apenas uma casa, um ator, uma atriz e seu público. E, ainda assim, tudo acontece dentro de uma lógica espetacular. Há uma cena onde Antonia distribui medos para as pessoas e guarda apenas para si um temor que, à primeira vista, me pareceu terrível. Ela não divide ele com ninguém. Ela não quer. Não pode dividi-lo. Seu olhar é um prenúncio de uma devastação que acontece de forma impiedosa dentro de si mesma. Neste momento, passei do riso ao embargo na garganta em uma fração de segundos. Eu quis levantar e abraçá-la. Ali, então, eu soube: o jogo de Antonia é precisamente nos fazer mergulhar em uma experiência que só pode acontecer no nosso íntimo e em nenhum outro lugar.

Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

 

A equipe do AGORA Crítica Teatral foi convidada pelo Festival de Teatro de Gravataí. A produção crítica faz parte do eixo Conexões Reflexivas.