FESTIVAL DE TEATRO DE GRAVATAÍ
Consuelo Vallandro, Gravataí (RS), 28/11/2022
Espetáculo 2 Lunáticos, de Pichacha e Fran, é composto de variados números circenses
Andréa Seligman / FETEG Divulgação

Desafiando a lei da gravidade

Lunático, segundo o dicionário, é o adjetivo atribuído a quem é “influenciado pela lua; aluado. Excêntrico; diz-se de quem tende a divagar ou vive no mundo da lua.” Por extensão, lunático é sinônimo de maluco. De fato, faz jus ao nome e vem do mundo da lua o espetáculo Dois Lunáticos, da Cia Re Tri Circo, da dupla dos artistas Fran e Pichacha,  juntos desde 2017. Porém, o show destes artistas parece ser proveniente de ambiente lunar não apenas porque seus protagonistas se comportam, de fato, um pouco como malucos, mas porque seus números parecem muitas vezes desafiar uma das principais leis que regem nosso planeta: a lei da gravidade.

Ainda, seguindo este raciocínio astrológico, na apresentação a que assisti, houve ainda mais uma conjuntura dos astros: dentro do Festival de Teatro de Gravataí, este espetáculo dos dois simpáticos palhaços um pouco desatentos, mas muito habilidosos estava programado para ser apresentado na rua. No entanto, uma chuva torrencial no dia acabou levando-os emergencialmente para a proteção do ginásio de uma escola, a EMEF Prefeito José Linck, no Loteamento da Lagoa, onde mais de 200 crianças de um bairro bastante periférico da cidade ganharam o presente surpresa de poder prestigiar essa dupla de circenses muito talentosos.

A trupe de dois apresentou-se com um figurino bastante típico e chamativo com roupas listradas e detalhes em vermelho, combinando inclusive com as claves dos malabares e a pequena cortina ao fundo, além do tradicional sapato agigantado e de sugestivos capacetes vermelhos. O cenário era bem simples e funcional: no chão, para delimitar a zona de atuação da dupla, uma lona de picadeiro; sobre ela, um mundo inteiro para envolver as crianças. Os dois iniciaram a apresentação de imediato com um jogo clownesco, e seguiram usando e abusando do gênero de gags do palhaço que não entende direito o que ouve do público ou mesmo do colega. Infelizmente, neste show, por conta de problemas de equalização, a recíproca foi verdadeira: as crianças tiveram alguma dificuldade de escutar com clareza a trilha e o que os personagens falavam – mesmo com microfones e voz ampliada em caixa de som, o que dificultou também a compreensão da proposta de linha dramatúrgica das personagens em cena, que usavam o seu sono como mote. Mas esse fato em geral pouco importou para os alunos da José Linck: o interesse era enorme, houve pouquíssima dispersão (algo realmente surpreendente para duas centenas de crianças juntas) e a comunicação fluiu, promovendo-se uma interação bem rica e um envolvimento entre os artistas e a plateia, a qual estava empolgadíssima: gritava e aplaudia a cada desafio e a cada nova dificuldade superada pelos circenses.

Sobre seu picadeiro, em cerca de 40 minutos Pichacha e Fran demonstraram domínio deste jogo com o público infantil, mantendo-se sempre em diálogo e interação, e usando do próprio risco de que algo ou alguém caísse nas primeiras fileiras da plateia para causar ainda mais furor e risadas. Tecnicamente falando, seus números seguiram a estruturação mais tradicional no circo, a qual se constrói por meio da realização de uma sequência de truques que segue uma linha crescente de nível de dificuldade, atingindo o apogeu em seu último momento, o mais complexo e considerado “impossível”. Isto se deu inúmeras vezes durante o espetáculo, que se compõe de variados números que atingem um grau alto de dificuldade: malabares com claves, chegando a ter 5 jogadas individualmente e 8 jogadas em dupla, com um bom leque de estilos diferentes de jogo; equilibrismo de objetos; equilíbrio sobre o monociclo – o tradicional e o chamado “girafa”, que é mais alto; acrobacia em dupla; e a chamada “dissociação”: nome dado a uma técnica que mistura ações diferentes de malabarismo e ou equilibrismo sendo executadas ao mesmo tempo pelo artista, que faz uso de diversas partes do corpo para conseguir tal façanha.

Sem dúvida, a técnica e a segurança da dupla é um grande destaque. Percebe-se pela aparente facilidade de execução a preparação e o domínio das habilidades trabalhadas – não à toa, Pichacha se destaca entre os circenses do Estado, é capaz de realizar números e truques de grande complexidade. Da mesma forma, Fran se junta a um seleto grupo de mulheres que trabalham com a técnica do monociclo em cena por aqui. Nesse sentido, o espetáculo traz muitos pontos altos a se destacar, dentre os quais vou remeter justamente ao “mais alto” de todos, quando Pichacha equilibra sobre o queixo uma escada metálica de nada menos que 16 degraus, ou seja, mais de 4 metros de altura. No entanto, o apogeu do espetáculo não é este fisicamente mensurável. Para mim, assistir a Dois Lunáticos neste contexto em meio a um mar de 200 crianças cuja maioria talvez nunca tenha tido contato com o circo – ou com qualquer arte da cena – antes realmente nos transporta para outro mundo: o da magia criada pelo universo circense diante de olhos incrédulos e rostinhos boquiabertos, que se emocionam e se empolgam com cada novo desafio vencido pela dupla. A curadoria do Festival de Teatro de Gravataí está de parabéns por valorizar e reconhecer a importância do circo em sua programação.

 

A equipe do AGORA Crítica Teatral foi convidada pelo Festival de Teatro de Gravataí. A produção crítica faz parte do eixo Conexões Reflexivas.