CALÍGULA
Thiago Silva, Porto Alegre (RS), 21/10/2022
Dramaturgia se vale do nome e da historicidade de Calígula para denunciar as artimanhas do tempo presente tendo como protagonista Marcos Contreras
Foto: Alexandre C. Moreira

Insanos no Poder (ou Bandeira Manchada de Sangue)

Lembro-me que, quando assisti pela primeira vez ao filme Calígula (1979), de Tinto Brass, eu era um jovem estudante de História ingressando no curso. Estava justamente cursando a disciplina de História Antiga Clássica e recordo do fascínio – acompanhado de extremo incômodo e estarrecimento – acerca do imperador romano Caio Júlio César Augusto Germânico: o Calígula. Narrando a trajetória do terceiro imperador da dinastia júlio-claudiana, com visível destaque para os pontos mais polêmicos de sua biografia, o filme de Tinto Brass estabelecia uma relação orgíaca com os elementos biográficos do personagem-título. Não obstante, o filme teve uma série de contratempos e controvérsias na época de seu lançamento, uma vez que, muito mais do que um drama histórico, o longa assumia-se como uma obra abertamente erótica, carregada de apelos explícitos. Tratava-se, portanto, de uma leitura específica do imperador e do contexto sociocultural que o circundava, envolta em cotejos reais e ficcionais sobre sua figura.

A peça Calígula, dirigida por Lisandro Pires Bellotto, também busca outras relações com o imperador romano na sua estrutura cênica – não apenas em sua proposta de encenação, mas, sobretudo, na linguagem vertiginosa articulada ao longo da peça teatral. Com uma direção que aposta no trabalho do ator Marcos Contreras como ponto central de toda ação construída no palco, o espetáculo não aborda a cronologia histórica ou a história de Calígula em si mesma, mas as usa como um vetor para falar sobre o Brasil de 2022: seus devaneios, suas violências e seus retrocessos. A dramaturgia de Maria Luíza Madureira estabelece relações entre passado e presente através de uma associação dramatúrgica livre, visceral, que não teme o estranhamento ou o confronto. Por meio de metáforas, imagens, paralelos políticos e sociológicos, dinâmicas poéticas e intersecções entre o ontem e o hoje, a dramaturga se vale do nome e da historicidade de Calígula para denunciar as artimanhas do tempo presente: um tempo em que não há mais imperadores romanos propriamente ditos, mas onde abundam poderes e figuras despóticas que se valem do espaço público para instaurar suas próprias concepções e representações excludentes de mundo.

    Homônimo do imperador romano, o personagem central da peça mergulha nos meandros de um Brasil autoritário, completamente dizimado pelo escárnio e pela barbárie. É desse e para esse Brasil que a peça fala: um país de patrícios e plebeus, de “civilizados” e “bárbaros”, de pão e circo, onde pessoas são jogadas diariamente para os leões, sem nenhum pudor. Mais do que isso: um país que concede poder aos seus tiranos, legitimando e naturalizando suas ações mais torpes; que bate palma e sorri enquanto o outro é devorado. Assim, com uma teatralidade impetuosa que faz emergir as simbologias do texto no âmago do imagético e da polifonia tragicômica que reverbera na cena, Calígula desvela o horror ao qual estamos atrelados, mostrando que nem sempre o imperialismo, o colonialismo e obscurantismo se revelam por intermédio de sua literalidade histórica. Perpassando entre uma e outra faceta de seu Calígula, o espetáculo simboliza diferentes meios de criar, denunciar e resistir a este horror.

A grande proeminência deste aspecto do trabalho é a atuação de Marcos Contreras, especialmente porque ela consegue segurar o espectador onde o simbólico do texto não o alcança. Não há muitas concessões na dramaturgia de Calígula, uma vez que o fluxo dramatúrgico é intenso, sem muito tempo para digerir o que é dito e sem preocupação evidente com a inteligibilidade desse dizer para o público. Ainda assim, os significados do texto saltam na interpretação que se vê em cena – isso porque, apesar das dificuldades relacionais entre dramaturgia e espectador, a atuação de Contreras consegue estabelecer um lugar de cumplicidade com o público que traduz, por vezes, o que não se pode compreender (ou ao menos apreender) sem a leitura direta do texto dramático – que é distribuído na entrada do Teatro. É através da ação delineada pelo ator em cena, inclusive, que conseguimos traçar e absorver os paralelos mais profundos propostos pelo trabalho.

Algo de suma importância, nesta direção, é o corpo do ator e a proposição de sua corporalidade na cena. São muitas as camadas discursivas e representacionais que este corpo habita ao longo da peça. Onde o texto infere relações históricas e políticas bastante específicas, distanciando, muitas vezes, o espectador do todo proposto (pois é preciso ter certas referências prévias para absorvê-lo), o trabalho corporal (e vocal, uma vez que o vocal aqui também toma e inunda o espaço do corpo) de Marcos Contreras transpassa a dificuldade dessas relações ao delinear uma dinâmica própria que instaura o sentido tácito do que se presentifica no palco. Assim, a cada mudança corpórea que observamos em cena (um jeito de andar, de deitar, de se portar, de sair, de dizer), observamos também a mutação de Calígula e as interações que as diferentes facetas desse personagem estabelece com o Brasil neofascista de hoje. Deste modo, seja falando de Roma, da Amazônia, da ditadura, da guerra, da constituição, da globalização, das recentes manifestações antidemocráticas ou de outros assuntos similares que atravessam a nossa contemporaneidade, quem fala é o corpo do ator, mastigando e reverberando a palavra em nossos próprios corpos.

Ademais, outro destaque do trabalho são a trilha sonora hipnótica de Daniel Roitman e as entradas exponenciais de Jackson Brum, que configuram um tom mais abstrato e poético para aquilo que é dito e materializado por Marcos Contreras. No caso de Jackson Brum, trata-se de um duplo dicotômico com a figura de Calígula, trazendo a força daquilo que escorre nas mãos dos ditadores: o hip hop, a rua, a dança, o poder avassalador da cultura popular. A cada entrada de Brum, um novo ato de resistência se faz presente, possibilitando um respiro diferente para quem assiste ao espetáculo. É como se, a cada ato de adentrar o palco, o bailarino engendrasse a rebeldia que nunca se deixa abater, seja qual for o tempo despótico vivenciado. A música de Roitman, por sua vez, intensifica estados e compõe a ação visual, ora perturbando, ora libertando nosso olhar e nossa audição.

As imagens projetadas – pelos atores e pelos vídeos de Maurício Casiraghi – são outro ponto relevante na montagem, pois é através das imagens que as relações políticas são solidificadas. Deste modo, seja na resistência do corpo que baila, no cuspe do facínora alucinado ou no microfone daquele que pode falar, seja nos vídeos que instauram percepções alegóricas da realidade, a imagem produz e tece sentidos diversos. Faz cintilar signos entre grupos, sujeitos e recortes distintos da História. O ápice desta configuração cênica é quando vemos Calígula dançando com a bandeira do Brasil como um estandarte, enquanto o vermelho, gradativamente, toma conta do espaço, cravando a bandeira de tiros e banhando-a em sangue. Após isso, ditador e povo seguram a bandeira nas mãos, juntos, diante de um cão que rosna desvairado para a plateia, mostrando que, quando o horror se impõe, todos perdem – inclusive o imperador injusto que sempre cai.

Intenso, Calígula é um espetáculo que fala sobre insanos no poder e sobre o controle que concedemos às insanidades que se estabelecem no seio societário; é sobre a naturalização do medo, da injustiça e da bestialidade; sobre a banalidade do mal que se enraíza na vida em sociedade sob o pretenso manto do bem. É um trabalho que diz muito sobre nosso tempo, sem deixar de falar sobre como chegamos a ele. É necessário porque faz do palco uma trincheira, mas, mais do que isso, porque toma partido sem abandonar a poesia. É Teatro e por isso mexe tanto conosco, mesmo que suas apostas não sejam fáceis – desconfio que nunca são quando se produz peças desta natureza.