PARCO
Consuelo Vallandro, Porto Alegre (RS), 19/09/2022
Companhia Jovem de Dança de Porto Alegre apresenta sua mais recente criação coletiva composta por 14 jovens bailarinos/as com coreografia de Driko Oliveira
Foto: Nando Espinosa

Parco de berço, abundante no palco

Noite fria, plateia quente: assim foi o clima da mostra com a dobradinha entre a Companhia Jovem de Dança, que apresentaria Parco, e a Cia Municipal de Dança de Porto Alegre, com Scanner. Logo que cheguei, vi um Teatro Renascença lotado com um público calorosamente aplaudindo ansioso para que o espetáculo de abertura começasse logo. Os minutinhos a mais de espera além do horário marcado foram embalados por palmas, que ganharam volume e estrondosa empolgação vocal após o anúncio da primeira atração – e não era para menos: a apresentação que se iniciaria em seguida marcava a volta aos palcos de um grupo muito significativo para a comunidade da dança não só de Porto Alegre, mas de todo o Estado – a Companhia Jovem de Dança de Porto Alegre, um projeto que nasceu em maio de 2016 com objetivo de integrar Arte, Educação, Desenvolvimento Social e Profissionalização para jovens bailarinos ainda em idade escolar [1].

​​O elenco de 2022 que apresentou sua mais recente criação coletiva é composto por 14 jovens bailarinos. A obra foi coreografada por Driko Oliveira, sob direção geral de Airton Tomazzoni, Ilza do Canto e Fernanda Santos. A conotação do nome Parco já diz muito: é fruto da reflexão sobre a realidade de muitos deles, que, antes mesmo de completar seus 18 anos, já precisam trabalhar para ajudar no sustento de sua família, dadas as condições que os cercam.

Parcas também são as opções que estes jovens encontram diante de um mundo extremamente consumista e inevitavelmente segregador: os bailarinos, intérpretes-criadores da Cia demonstram através de um jogo cênico muito bem construído os excessos e faltas que vivem nesta fase de transição entre a infância e a adolescência, no seu caso, tendo ainda para si precocemente empurradas algumas das responsabilidades da vida adulta. Essa troca de corpo, de jeito de ser e de parecer e aparecer no mundo foi metamorfoseada numa das questões que circunda muito o universo do adolescer: a aparência, que se materializa em cena por meio de roupas – muitas roupas, as quais são vestidas e desvestidas em células coreográficas por vezes sincrônicas, por vezes isoladas, alternando entre movimentos tranquilos e frenéticos, transitando do jazz ao breaking.

Assim vemos aflorar uma questão importante para estes jovens: Como se comportar diante desse mundo de itens de vestuário desejados e propagados nas mídias e redes sociais quando só se consegue escolher e adquirir algumas poucas peças de roupa com o primeiro emprego? No meio deste diversificado monte de roupas, os jovens dançam: ora se perdem, se trocam, se acham, despem a outros e a si mesmos em alguns momentos; ora se trocam as vestes, num fluxo contínuo que é sublinhado pela presença de um grande fio como pano de fundo, servindo como um cabideiro que ocupa todo o fundo do palco enquanto único – parco – cenário, onde as peças às dúzias vão sendo suspensas e trocadas e recolocadas, continuamente. Estão todos, de fato, por um fio.

Parco surpreende e delicia porque nasceu de fato de muitas condições parcas: não apenas sociais ou econômicas, ou mesmo familiares, mas da própria Cia Jovem: além da dificuldade de conciliar horários coletivamente por conta dos empregos que cada bailarino conseguiu para sobreviver, o município, que mantém os projetos, infelizmente desde o fechamento da Usina do Gasômetro não possui mais um espaço apropriado para pesquisa, criação e ensaios de grupos de Dança. Em função disso, a Cia Jovem, assim como a Cia Municipal, precisam buscar espaços alternativos para se manter em funcionamento, com suas aulas e ensaios: ou usam os próprios teatros do Centro Municipal de Cultura em raros calendários vagos, ou precisam disputar datas na bem sobrecarregada e concorrida Casa de Cultura Mário Quintana, que serve ao Estado, ou ainda em escolas privadas que generosamente cedem sua própria casa, como o Espaço N. Ainda, as inúmeras roupas que compõem o cenário/figurino foram juntadas pelos diretores e pelo coreógrafo. Por conta destas parcas condições todas, Parco faz jus ao próprio batismo – nasceu e foi ensaiado em menos de 10 encontros, seguindo a linha da “estética da precariedade” – uma “escolha” estética bastante presente entre as produções de diversos segmentos culturais brasileiros na atualidade.

A própria mostra no teatro Renascença das duas companhias da cidade de Porto Alegre durante uma temporada de um final de semana só ocorreu graças à verba angariada por uma emenda junto à Câmara Municipal realizada pelo vereador Jonas Reis (PT). Assim, mesmo retratando a própria condição parca e precária de (sub)existência e subsistência – que, de fato, tem infelizmente assolado a maioria dos grupos profissionais de artes cênicas da cidade, quiçá do Estado e do país –, o que os bailarinos da Cia Jovem trazem à cena é justamente o oposto: a riqueza de todos estes corpos em fase de transição e ressignificação, em um momento de descoberta e transformação, e uma diversidade de técnicas de dança e  pluralidade potencialmente criativa, a qual foi muito bem aproveitada pela direção de Driko Oliveira.

De fato, enxergamos este limbo inerentemente humano entre a infância e a adultez, e toda a tensão existente nesta fase entre o indivíduo e o coletivo: suas vontades e valores pessoais e seu desejo de encontrar uma tribo e sentir-se parte de um grupo, a descoberta do próprio corpo e do corpo do outro com um misto de estranhamento e sensualidade marcam a criação coreográfica. Nela assistimos a um passeio harmônico entre solos, movimentos de grupo em estilo de cardume e coreografias coletivas, destacando-se visualmente a estranha beleza da cena em que todos os bailarinos resolvem vestir um único indivíduo com praticamente a totalidade das roupas em cena, transformando-o em uma espécie de monstro disforme que mal consegue andar.

Ao final da apresentação, a plateia veio abaixo: não por menos; não porque Parco já seja uma obra-prima esteticamente bem-acabada e performada, já que trata-se de um work-in-process, como ressalta Driko. Pelo contrário: segundo seu coreógrafo, ela está no estágio mesmo do próprio tema que retrata: assim como a nova roupagem do adolescente que vê seu corpo se transformar com uma peça, duas peças até dezenas de peças que se sobrepõem sobre seu corpo, Parco também certamente ainda receberá diversas outras roupagens ao longo de novos ensaios, pesquisas e possíveis novas formações de elencos. No entanto, o que a obra traz em termos de potência é o que está por baixo dessas roupas todas: o quanto a arte – no caso a dança – tem um rico poder de transformação, não só de quem dança, mas de quem a apoia, de quem assiste e de quem por ela é tocado.

 

[1] A Cia é fruto de uma parceria entre a Secretaria da Cultura e da Educação da Prefeitura de Porto Alegre através de um trabalho em conjunto entre o projeto envolvendo as cinco Escolas Preparatórias de Dança (EPDs) e a Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre, outro projeto de grande importância para a capital. As Escolas Preparatórias de Dança mantêm a formação de jovens e crianças da periferia, oferecendo gratuitamente aulas regulares de dança e atendendo 300 alunos por ano em cinco escolas municipais da capital: EMEFs José Loureiro da Silva (bairro Cristal); Pepita de Leão (Passo das Pedras), Liberato Salzano Vieira da Cunha (Sarandi); Deputado Vitor Issler (Vila Mario Quintana), e Alberto Pasquilini (Restinga). A Cia Jovem surgiu com um elenco formado por alunos 20 alunos e alunas que se destacaram no processo de formação nas Escolas Preparatórias de Dança e, em seus 6 anos de existência, já realizou 6 montagens de espetáculos, com inúmeras apresentações que reuniram cerca de 12 mil espectadores. A proposta, que visa promover uma capacitação e qualificação destes jovens artistas, também traz para estes jovens a perspectiva de oferecer uma profissão e uma oportunidade de emprego e renda, bem como de intercâmbio e amadurecimento artístico a partir do convívio e do trabalho em conjunto com bailarinos e coreógrafos profissionais.