PRÉDIOS ESPELHADOS MATAM PASSARINHOS
Pedro Bertoldi , Porto Alegre (RS), 11/09/2022
Dramaturgia das imagens é o grande destaque do novo trabalho do GRUPOJOGO
Foto de Julio Appel

Prédios espelhados nos matam a cada dia

Durante o ensino médio, trabalhei como estagiário numa repartição pública. E como estagiários fazem de tudo, certa vez me colocaram para atender o telefone. As chamadas eram tão frequentes e as frases que eu precisava dizer eram tão repetitivas que chegava a sonhar que estava atendendo o telefone repetidas vezes. Obviamente acordava exausto, já que o trabalho não acabava quando eu batia o ponto e, sem que pudesse realmente descansar, lá estava eu novamente atendendo o telefone.

Trago esse relato pessoal porque foi pra este lugar que minha memória me transportou assim que as primeiras frases de Prédios Espelhados Matam Passarinhos ecoaram pelo Teatro Glênio Peres. O espetáculo, o primeiro com dramaturgia autoral do GRUPOJOGO, reflete sobre as relações de trabalho e, como não poderia deixar de ser, escancara as relações abusivas que permeiam esses vínculos.

Para contar essas histórias, a dramaturgia revisita o mito de Sísifo e seu terrível castigo de rolar uma imensa pedra por toda a eternidade. Porém, como é característico do teatro contemporâneo, o mito é apenas o estopim para que se fale do hoje e substitui o personagem mitológico pelos representantes da classe trabalhadora, também condenados à repetição exaustiva de seus afazeres.

A escolha do grupo por essa temática não poderia ser mais acertada, especialmente após os últimos anos, quando a precarização do trabalho e das leis de direitos trabalhistas têm empurrado cada vez mais trabalhadores para a informalidade e a miséria – e também porque, especialmente no contexto brasileiro atual, temos uma relação dicotômica com o trabalho. Se por um lado estar empregado é romântico – afinal você atesta sua dignidade e produtividade –, por outro também é uma porta de entrada para adoecedores ambientes profissionais, onde as relações de poder se manifestam repetidamente e onde, com o perdão pela frase de coaching, só os fortes sobrevivem.

Mas o que acontece com aqueles que sucumbem? Para onde vão os passarinhos que batem nos vidros espelhados? Há lugar para eles em uma sociedade cada vez mais adoecida como a nossa? A julgar pelo cenário apresentado pelo espetáculo, estamos longe de uma resposta esperançosa para esses questionamentos.

Ao tecer um painel das relações laborais contemporâneas, da especulação imobiliária ao charlatanismo que impregna o marketing digital e de onde nem mesmo o mercado de trabalho teatral escapa, a dramaturgia textual, construída em um processo colaborativo junto ao grupo e organizada por Gabriel Pontes, consegue captar essa temática de forma nada romântica, o que é um ponto positivo e, apesar do uso de alguns clichês que não desabonam o conjunto, consegue deslizar facilmente entre a comédia e o drama, outro ponto positivo.

Mas não é nesta dramaturgia textual que reside o grande destaque deste trabalho, mas sim na dramaturgia das imagens trazidas pela direção de Alexandre Dill. Quem já acompanha o trabalho do grupo consegue perceber facilmente o amadurecimento da sua visualidade a cada espetáculo, a qual neste último ganha um grau de qualidade e encadeamento que merece louvor.

As imagens escolhidas para compor o espetáculo são potentes isoladamente, mas deslizam tão bem entre uma e a outra que mal percebemos quando elas ganham novas camadas de interpretação. E é justamente esse caminho deslizante entre uma imagem e outra que torna a dramaturgia visual deste espetáculo um grande destaque.

Um exemplo de como esta dramaturgia visual consegue potencializar o que o texto propõe é a cena em que um estoquista dá socos em uma parede que, ao se desfazer, revela um cadáver. As interpretações acerca dessa imagem são múltiplas, como devem ser numa boa dramaturgia. Quando vi a cena, pensei no trabalhador como uma bomba-relógio prestes a explodir, fazendo ruir todo esse sistema trabalhista cadavérico que escondemos por detrás das paredes. Após o espetáculo, em conversa com amigos que também assistiram, fiz outra relação: quantos trabalhadores perdem suas vidas construindo ou limpando prédios espelhados? E quantos decidem saltar do alto deles quando já não conseguem mais entregar o que o mercado espera? Percebe como uma única imagem consegue despertar infinitas interpretações e enriquecer o universo dramatúrgico proposto pelo texto?

Ainda sobre a visualidade, é preciso destacar o cuidado com os detalhes que tornam essas escolhas estéticas ainda mais acertadas. Os enormes blocos de isopor que ganham diferentes funções ao longo da narrativa funcionam em muitos momentos como escadas que, se por um lado representam a escalada social, por outro também podem representar o desequilíbrio causado por essas relações de poder doentias que encontram nos ambientes profissionais um cenário ideal para se reproduzirem. Além disso, utilizando as máquinas como outra metáfora advinda do mundo do trabalho, a mescla entre as linguagens do teatro e do audiovisual – área que conta com a direção de Gabriel Pontes – revela as engrenagens por trás do maquinário da peça. Desse modo, é interessante como o espetáculo utiliza essa mescla ora para criar oposições entre o que se vê e o que é dito, ora para ilustrar e reforçar as situações da peça.

De um modo geral, vejo Prédios Espelhados Matam Passarinhos como uma ode aos trabalhadores e uma crítica mordaz aos exploradores do trabalho. Após episódios repugnantes envolvendo trabalhos análogos à escravidão, demissões em massa decorrentes da precarização das leis trabalhistas e os impactos nocivos à saúde mental de trabalhadores cada vez mais esgotados, é no mínimo interessante ver como a poesia captura esses elementos e dá novos significados a eles.

Com Prédios Espelhados Matam Passarinhos, o GRUPOJOGO, se alimenta da tragédia humana para entregar poesia e crítica, e o faz através de uma dramaturgia visual tão impactante quanto necessária. Resta esperar (e lutar) para que, um dia, tal como o estoquista retratado em cena, os passarinhos possam derrubar os prédios espelhados.