EM CHAMAS
Pedro Bertoldi , Porto Alegre (RS), 26/08/2022
Escrita em 2003, a peça da dramaturga indiana Manjula Padmanabhanse se baseia em um episódio brutal da história da Índia ocorrida no ano anterior
Fotos de Sofia Wolff

Um ensaio sobre o ódio

Eram aproximadamente 22 horas da noite de um domingo quando saí do Teatro Renascença sem cumprimentar o elenco e equipe à frente do espetáculo Em Chamas. Saí correndo pela Avenida Érico Veríssimo até minha casa, alguns 500 metros dali, e obviamente cheguei ofegante. Mas não foi pela corrida.

Em Chamas é um daqueles espetáculos que nos atravessam, ou atropelam, de tal maneira que é impossível sair ileso. Como se tivesse sido pego pelo colarinho, assisti ao espetáculo com uma energia tão densa que a certa altura da noite me questionei “por que ir ao teatro”. A resposta para esse questionamento compartilho ao final do texto. Antes disso, me atenho às imagens e narrativas de Em Chamas.

Pra começar, é preciso elogiar a maturidade da direção do jovem Matheus Melchionna, que não cai na tentação de brigar com a estrutura que o texto propõe. Em Chamas, da dramaturga indiana Manjula Padmanabhan, é a união de 4 monólogos e um prólogo que aparentemente não se conectam, o que cria um ritmo previsível para o espetáculo. Melchionna aceita essa estrutura e reconhece a potência do texto que tem em mãos – e talvez por isso opte por uma estética crua e direta, mas não menos potente.

Criando uma atmosfera cortante, fermentada por uma trilha sonora bem desenhada e contundente, criação do jovem Vitório Oliveira Azevedo, que a cada trabalho vem se firmando como um dos mais promissores compositores sonoros da nova geração, o espetáculo nos arrebata justamente por sua paradoxal simplicidade complexa, termo que me soa estranho, mas não consigo encontrar outro que descreva melhor esta impressão. Tento explicar: não espere grandes pirotecnias, nem no cenário e nem na iluminação. São eficientes e precisos naquilo que precisam ser para um texto com essa densidade.

Em Chamas é um ensaio sobre o ódio em suas camadas profundas e complexas. Um texto que, apesar do ritmo previsível que cria em sua estrutura episódica, vai pouco a pouco se adensando e se materializando nos corpos que com ele interagem. Neste sentido, a crueza desses elementos visuais funciona como se a direção nos dissesse que é um espetáculo do texto e é ele que deve ser visto e sentido. É ele que deve se sobressair. É como se a simplicidade de toda a embalagem fosse justamente um convite para que o espectador acesse a complexidade do texto de Padmanabhan.

E por falar no texto, o de Em Chamas, originalmente Hidden Fires and Other Monologues, é daqueles que não se encerram em si mesmos, deixando os leitores/espectadores como que infectados por suas nuances e subjetividades. Movido por essa infecção viral, pesquisei mais sobre a obra e sua autora e o que encontrei serviu não apenas para complementar a experiência com o espetáculo, mas para enriquecer as conexões que fiz entre a obra e o contexto social contemporâneo.

Escrita em 2003, a peça se baseia em um episódio brutal da história da Índia ocorrida no ano anterior. A morte de 60 hindus provocada por um incêndio em um trem no estado indiano de Gujarat foi o estopim para a perseguição e a morte de mais de mil muçulmanos, acusados do ataque. Traumático, o episódio até hoje é uma ferida em carne viva na Índia, mas não só lá.

Inteligentemente, a autora não situa seu texto no país e nem neste episódio em especial, fazendo com que as situações apresentadas por ela possam se relacionar com o contexto de qualquer país; afinal, guerras, como a que está acontecendo entre a Rússia e Ucrânia, não se dão entre países, mas fundamentalmente entre pessoas.

Se a escolha da escritora em não situar sua obra em um país ou episódio em especial foi inteligente, a do grupo, ao não situar ou exacerbar as relações com o Brasil contemporâneo, também foi. Muitas vezes, na tentativa de frisar a atualidade de um texto, os espetáculos acabam exagerando em intervenções textuais ou em signos que ilustram as relações possíveis, não dando espaço para que o espectador faça esse trabalho por si mesmo. Não é o que acontece aqui. Sem que o espetáculo nos conduza a uma ou outra interpretação, é possível traçar relações entre o cenário social do Brasil atual com o sistema desumanizador e predatório que o espetáculo apresenta.

O elenco, composto por Lauro Fagundes, Gabriela Grecco, Luiz Manoel e Denizeli Cardoso, tem uma difícil missão em mãos: corporificar um texto que, de tão denso, repele o espectador. Neste sentido, é como se coubesse aos atores a incumbência de convidá-los novamente ao ritual – uma tarefa árdua e por vezes ingrata, mas que o elenco consegue desempenhar com louvor.

Lauro Fagundes tem em mãos um personagem fascinante, que inteligentemente é disposto logo no início do espetáculo, imediatamente após o prólogo. É ele que nos dá o tom do que está por vir e que tem uma importante missão em qualquer espetáculo: a identificação. É, de todos os personagens, aquele que conseguimos identificar por aí, nas ruas, na televisão, na política, em nós mesmos. Um segregacionista que, movido pelo ódio àqueles que considera uma ameaça ao seu país, vai até às últimas consequências, até o ponto em que ele próprio se torna alvo do ódio que tanto alimentou.

Gabriela Grecco, elegantérrima vestindo um Antônio Rabàdan legítimo, é uma apresentadora de um programa de televisão que recebe relatos das brutalidades do sistema de um país, qualquer país, como nos afirma o prólogo. Um país é feito de brutalidades. De negação de direitos. O monólogo interpretado por Grecco nos lembra que um país também é feito da negação da realidade, da mídia manipuladora que reafirma realidades inexistentes e da apatia daqueles que apenas assistem passivamente à ruína e que, inevitavelmente, também caminham em direção a ela.

Numa escalada de tensão, o monólogo interpretado por Luiz Manoel é o mais difícil, tanto pelo personagem, um tanto quanto desumanizado e demoníaco, quanto pelo teor do texto: ao meu ver, uma crítica ao sadismo dos reality-shows, mas, principalmente, à nossa apatia: Nós estamos neste cenário social, nós estamos assistindo ao caos e ao ódio materializado, mas por que não estamos nos movendo?  Na cena, Luiz interpreta o cerimonialista de um jogo onde os espectadores precisam adivinhar as letras que compõem uma palavra – a qual não revelarei para evitar spoilers, já que essa foi, ao meu ver, uma das grandes experiências da noite. Em cada erro algo voraz acontece.

Cabe à atriz Denizeli Cardoso a tarefa de nos pegar no colo. Com seu monólogo, que recria uma tradição hindu, a deusa vivida pela atriz nos afaga. Não que o teor de suas palavras seja doce, e realmente não é, mas Denizeli a encarna com tanta candura que é como se ela nos mostrasse que é tudo parte do ritual. O ritual necessário de dar nomes. Numa sociedade cruel e cada vez mais desumanizada como a nossa, estamos assistindo a pessoas perdendo suas identidades e suas vidas e virando números. 60 hindus. Entre 1000 e 2000 muçulmanos mortos. 682 mil mortos por COVID no Brasil. Um jovem negro assassinado a cada 23 minutos. 1 mulher estuprada a cada 11 minutos. Quem eram essas pessoas antes de se tornarem este número? O que gostavam de fazer? Que música ouviam? De quem era a foto que tinham na carteira? Com o que sonhavam? Sonhavam?

Respondendo finalmente ao meu questionamento sobre o que me leva ir ao teatro, recorro justamente a essa palavra: ritual. Fazer parte de algo ritualístico nem sempre nos entrega aquilo que queremos ver ou sentir, mas às vezes pode nos entregar aquilo de que precisamos. Para mim, o ritual proposto pela montagem de Em Chamas foi isso: uma exposição necessária do ódio. Esse ódio que a gente quer negar ou terceirizar, mas que é nosso. Todo nosso!