TREMOR
Renato Mendonça, Porto Alegre (RS), 25/05/2018
Lucca Simas aposta na força das imagens para encenar texto da alemã Maria Milisavljevic
Montagem de "Tremor" inclui uma rampa que ocupa praticamente todo o palco do Teatro do Goethe-Institut, em Porto Alegre

Um jogo das imagens

Além de marcar a estreia profissional na direção de Lucca Simas, a apresentação de ontem de Tremor comprovou o sucesso do projeto Transit. Já no segundo ano, o projeto do Goethe-Institut, em parceria do Palco Giratório, financia dois grupos gaúchos para encenarem o mesmo texto, de um dramaturgo ou dramaturga alemães. O escolhido em 2018 foi Beben (Tremor), de Maria Milisavljevic.

No caso, mais que um texto – um desafio. Maria, 36 anos, criou uma obra com várias narrativas superpostas - e nenhuma rubrica. Tremor é uma sucessão de estremecimentos emocionais: memórias da infância, traumas de guerra, disfunções emocionais, referências à realidade imediata, escárnios dirigidos a políticos e a instituições, denúncia da alienação virtual das redes. Um manifesto geracional, uma bomba de fragmentação e de indignação.

Na semana passada, a diretora Patricia Fagundes, a outra vencedora do Transit, resolveu essa equação por meio da empatia, da elegia ao coletivo e do desarme emocional, traços que, de resto, marcam o trabalho de sua Cia Rústica (ver crítica no link e relato do processo de criação no link).

Lucca Simas, alinhado com a trajetória do seu grupojogo de experimentação cênica, aposta na força das imagens. Quem chega ao Teatro do Goethe-Institut se depara com uma enorme rampa que ocupa praticamente todo o palco, ladeada por dois monitores. A cenografia engenhosa, concebida pelo diretor e por Alexandre Dill, é absolutamente ajustada com o espírito do texto original, que trata de jornadas que terminam no vazio, de jogos subterrâneos, de um estado de perpétuo desequilíbrio e do tal Homem da borda de Ulro, espectador (e manipulador) das desventuras humanas.

Para facilitar o acesso do espectador a Tremor, Lucca propõe uma montagem que sinaliza quatro polos principais: a Mãe, o Soldado, o Jovem e o Narrador. Cada um deles personifica energias que se digladiam: a Mãe (Manu Menezes) é o centro da emoção, da generosidade; o Soldado (Gustavo Susin) propõe desde sempre a violência como solução, seja enfrentando tanques ou meninos desarmados; o Jovem (Lucas Prado) sempre conectado ao virtual, chegando a declarar, enquanto olha pateticamente para seu celular, que “Isso é a minha vida”; e a Narradora (Louise Pierosan) encarregada de costurar as cenas e de semear a ironia de Maria pelas cenas.

A encenação incorpora a fragmentação do mundo que critica. Narrativas se truncam sem conclusão, monitores interrompem as ações presenciais, o uso dos microfones alterna a voz humana natural e amplificada, às vezes na mesma fala. O humor aparece de maneira inteligente: vale lembrar a passagem em que os atores parecem esquecer suas falas, surpreendendo a plateia, para em seguida retomarem a peça falando de esquecimento...

As adaptações de referências presentes no texto original, especialmente as que tratam de política, são feitas de maneira hábil - elegendo Temer como o paralelo brasileiro de Angela Merkel ou lembrando do assassinato da vereadora Marielle Franco, por exemplo. E às vezes com sutileza e humor, como quando um  personagem diz “se desmancham que nem um partido político”.

O texto de Maria, como já escrevi, é desafiante. Ele provoca o encenador a ordenar (ou não) as narrativas, e alterna voltagens emocionais sem que estas obedeçam a uma linha dramática convencional. Além disso, há extensas falas discursivas, que exigem dos atores um domínio de ritmo e de colorido da voz. Evidentemente, pode-se optar por uma enunciação monocórdica, mas não creio que fosse essa a opção da direção. Em alguns momentos, o elenco não supera a tarefa e o ritmo do espetáculo decai.

Algumas decisões de encenação merecem ser apontadas. O uso do gorro pelo Jovem, que vez em quando é puxado até cobrir seus olhos, oferece uma solução muito boa para materializar a desorientação da personagem. O revólver do Soldado não é apenas uma arma – é um ícone de seu poder. E torna muito mais forte a cena em que ele e a Mãe se defrontam, e o Soldado afirma que não consegue estender a mão, quando de fato a está estendendo com a arma. Outra passagem brilhante é a missão dos dois militares, que se passa embaixo da rampa e é mostrada ao público pelos monitores, em p&b, como no registro documental de uma entre tantas guerras por aí.

Lucca, entretanto, abre mão do poder de fogo da emoção em dois momentos decisivos da peça. Um deles é aquele em que o homem lembra sua infância e lamenta a ruptura na continuidade das gerações – a iluminação feita apenas com uma pequena chama esfria o tom e esconde a comoção do ator. E ainda no depoimento da Mãe, que se dá com o rosto de Manu em close nos monitores. É cena para se ver o corpo todo da atriz tremendo de emoção.

A peça Tremor, assim como o texto de Maria, se mostra geracional. A encenação e o elenco têm frescor, talento, generosidade e irreverência, embora eu tenha sentido falta de um envolvimento emocional que me fizesse tremer. A mensagem, entretanto, chegou clara: a Mãe é cega pela emoção; o Jovem, pela tecnologia; o Soldado; pela violência. Tremor quer conduzir-nos – nós todos, os cegos - em uma jornada espiritual que culmina no perdão. É uma alternativa a ser seriamente considerada?

Maria Milisavljevic, presente em Porto Alegre para as estreias das montagens de Lucca e de Patricia Fagundes, comentou que as cenas finais de seu texto, justamente as que tratam da possibilidade, da necessidade e até da facilidade do perdão, geralmente são tratadas com ironia pelam maioria dos encenadores, o que vale como indicio de que a desesperança reina, de que encaramos a superação de um mundo injusto e violento como uma jornada rampa acima, com um abismo no final.

Hoje à noite, no Goethe-Institut, a dramaturga participará de um debate com os dois diretores gaúchos e terá todo o direito de estar satisfeita. Propondo estilos e concepções absolutamente diversos, Lucca e Patricia não seguiram a maioria, evitaram o cinismo e concordaram com Maria que ainda há salvação. E que esta salvação pode começar em uma sala de teatro.

Gustavo Susin, Manu Menezes e Lucas Prado em cena de "Tremor", uma das peças do Transit 2018