A diretora Júlia Ludwig fala sobre o processo de criação, as escolhas e os desafios da montagem do espetáculo Avenida das Maravilhas, que será apresentado em três episódios online, nos dias 04 e 05 de novembro de 2020.
O texto Wonderland Ave., da dramaturga alemã Sibylle Berg, será encenado por dois diretores, em dois espetáculos independentes, dentro do Projeto Transit: além de Júlia, Leandro Silva conduz o outro processo. As montagens são uma corealização do Goethe-Institut Porto Alegre e Fecomercio/Sesc RS, em parceria com o AGORA.
Da mesma forma que nas edições anteriores, os processos de criação são acompanhados por dois provocadores-críticos do AGORA Crítica Teatral – Michele Rolim e Henrique Saidel – que participam de todas as etapas do Transit, incluindo a seleção das propostas, as negociações e adaptações ao contexto pandêmico atual, e os trabalhos dos grupos até a estreia.
Júlia é diretora e professora de teatro, co-fundadora e co-diretora do Bloco da Laje. Formada em Direção Teatral pela UFRGS, no qual montou o Grupo Barraquatro. É integrante do Coletivo das Flor e idealizadora da Cia Circular. Concebeu o Projeto Solos Férteis, no qual dirige os solos de Dedy Ricardo, Maria Falkembach, Renata de Lélis e atua no Solo Fértil - Canção para o Povo em Pé, dirigido por Adriano Basegio, do qual também assina dramaturgia e composições musicais, sendo indicada a Melhor Atriz pelo Prêmio Açorianos. Realizou assistências de direção para Gerardo Bejarano (Costa Rica), Patrícia Fagundes, Ramiro Silveira, Daniel Colin e Mirah Laline. Co-dirigiu o espetáculo AYÊ em POA e Tempografia no Rio de Janeiro, por este último recebeu o Prêmio de Melhor Direção no Festival da Cidade do Rio de Janeiro.
O AGORA conversou com a diretora por e-mail. Confira a entrevista:
AGORA - No projeto de montagem, vocês afirmam que o foco temático da montagem é a crescente mecanização do ser humano e a humanização da máquina. Isso se manteve ao longo do processo ou se transformou? Como este e/ou outros focos temáticos estão presentes no trabalho que irá estrear em breve?
Júlia Ludwig - Desde nossas primeiras leituras coletivas e conversas, essa ideia foi norteadora. Esperávamos trabalhar fisicamente estes conceitos, a partir de qualidades de movimentos mais mecanizadas ou fluídas, bem como a enunciação sonora, para alcançar um estado mais catatônico das Pessoas e um estado vivo/atento dos Robôs. No entanto, as reviravoltas do processo – que passou por um período de suspensão, de adaptação e finalmente de trabalho sobre uma nova linguagem virtual – não nos permitiram essas pesquisas físicas e coletivas. Trabalhamos na enunciação sonora dos Robôs um pouco destas qualidades, enquanto as Pessoas acabaram se tornando “mais humanas” do que imaginávamos a princípio. O trabalho ainda está em processo na pós, mas se conseguirmos realizar a ideia que tivemos para o fim, nessa nova linguagem, com nossos recursos, vai ficar bem evidente essa transformação que as Pessoas sofrem. Ainda é surpresa! No momento, estamos em pleno caldeirão de imagens dispersas, montando um quebra-cabeças onde cada um dos seis integrantes do elenco gravou sua parte separadamente. Quando conseguirmos visualizar melhor o todo, teremos mais precisão para analisar como este e outros propósitos se estabeleceram na nossa obra.
AGORA - Quais são as principais referências (artísticas e não-artísticas) do espetáculo?e da autora? Como elas foram trabalhadas no processo?
Júlia - Ao longo do processo, o elenco e a equipe de uma forma geral referiu uma grande lista de filmes e séries, de Star Track a Years and Years. Trocamos notícias e análises relacionadas ao assunto, e à chamada Revolução 4.0 que estamos vivendo – que seria a quarta revolução industrial, ligada à inteligência artificial conjugada a uma série de fatores, como velocidade do processamento de informação, computação quântica e outros. Particularmente, algumas entrevistas de Yuval Harari ( autor do livro Sapiens - Uma breve história da humanidade) sobre tecnologia foram bem impactantes para mim. Estamos em um daqueles terrenos um tanto incômodos de procurar saber mais, pois as previsões relacionadas ao poder da Inteligência Artificial, a revolução tecnológica somada à revolução biométrica (na qual nossos comportamentos e expressões naturais podem ser lidos e hackeados com cada vez mais facilidade), à perspectiva de em um futuro breve construirmos até mente e cérebro de forma digital, entre outras tantas possibilidades, assustam. Mas é para mexer nesses terrenos incômodos que a arte é uma excelente aliada. Sobre as referências da autora, nossa principal nesse momento é o próprio texto, no qual procuramos mergulhar. Ele se multiplica e faz interfaces com muitos assuntos e realidades. Por isso, neste momento, nos detemos exclusivamente no texto mesmo.
AGORA - Em uma primeira leitura, o texto de Sibylle Berg parece retratar questões, situações e contextos bastante ligados à Europa ocidental contemporânea e, mais especificamente, a grupos de pessoas brancas e de classe média. Como você e o grupo entendem e trabalham as possíveis conexões do texto com os contextos brasileiros, e porto-alegrenses?
Júlia - Sim, a personagem Pessoa é branca, europeia e de classe média. Representada (no nosso trabalho) por uma atriz negra e um ator negro, brasileiros. Este, para nós, foi um desafio e ao mesmo tempo uma forma de nos colocarmos diante deste tema e dos pontos de vista preconceituosos da Pessoa. Entre as propostas cênicas que surgiram ao longo do processo para evidenciar esta dicotomia, optamos por uma ação feita quando a Personagem lembra de filmes antigos que assistia em streaming. Vou deixar vocês assistirem para descobrirem qual é! No entanto, mesmo com um abismo de diferenças, nos identificamos com muitos momentos do texto, principalmente agora na situação de isolamento social, que é o que a Personagem de certa forma experimenta na história – a competição insana na qual os últimos seres humanos da Terra estão metidos, lutando uns contra os outros, sem entender a própria situação – também nos soam familiares, bem como o medo do futuro e as mudanças vertiginosas da realidade, narradas pelas Pessoas.
AGORA - Diante do conflito dualista, proposto pelo texto de Berg, entre o personagem humano (Pessoa) e o não-humano (o coro de robôs), tendemos a nos identificar com e defender a Pessoa, diante da opressão que sofre em seu encarceramento em Wonderland Ave. Afinal, também somos (ou acreditamos ser) humanos. No entanto, a Pessoa também mostra opiniões e posturas controversas e mesmo preconceituosas. Diante disso, deveríamos continuar nos identificando e defendendo a humanidade representada pela Pessoa? A humanidade deve ser sempre irrestritamente defendida? Ou melhor: quais características da humanidade deveriam ser defendida?
Júlia - Desde as primeiras leituras, essa questão me bateu. A personagem está num último momento de existência, offline, sem contato com outros humanos, e fala tudo que pensa, sem filtros e com muito preconceito. Temos que reconhecer que esses preconceitos estão vivos na humanidade, estão vivos em diferentes níveis, formas e contextos em cada um de nós. Se há algo que deve morrer, se há um aspecto da humanidade que deva ser extinto, talvez seja esse. Um paradigma que acredita em superioridade de uma etnia, gênero ou condição sobre outras, e que deve morrer para o nascimento de um novo paradigma. Nem tudo em nós é bonito e tem que seguir adiante nas próximas gerações. A Pessoa fala, em um certo momento, que tem algumas coisas que devem ser preservadas: as borboletas, as autoestradas, o café com leite… Eu concordo com ela nesse ponto. Acrescentaria, ainda, a nossa capacidade de agir coletivamente e colaborar uns com os outros. O humor. Os fracassos e inconstâncias. Nossa capacidade de amar e ser amado. Nascemos totalmente dependentes do apoio incondicional de um ou mais seres humanos. De alguma forma, esses cuidados básicos permeiam e nos marcam por toda existência. Este colo quente, orgânico, humano, eu espero que consigamos preservar.
AGORA - A montagem é desenvolvida com vários integrantes do Bloco da Laje, conhecido pelo trabalho corporal e pelo jogo entre atores, elevando a potência da teatralidade. Como manter essas características fundamentais do grupo no ambiente virtual?
Júlia - Nesse momento, nos foi inviável construir uma nova linguagem ou mesmo reinventar a que já tínhamos. Nos propusemos a realizar algumas tarefas, onde cada ator e atriz tinha um desafio para trabalhar em casa e mandar para os colegas, nos dando um pouco mais de liberdade para além das reuniões virtuais. Além do Bloco, temos uma origem teatral de base, de grupos que se propuseram a diversas experimentações, como o Barraquatro e Porcos com Asas, entre vários outros que fazem parte da história de cada um. Não nos foi possível um ensaio de 3 a 4 horas, como teríamos ao vivo: eram pequenos momentos do dia, nos quais conseguíamos nos reunir, em plataformas virtuais. Nos coube usar de todo nosso arcabouço de experiências teatrais, performáticas e carnavalescas para jogar e brincar, tendo a leitura do texto como referência principal. A cada trabalho, nos propomos a ampliar, desenvolver e recriar nosso vocabulário e jogos físicos. Neste, abrimos nosso baú de experiências e trabalhamos com tudo que já estava disponível. Contamos com um incrível elenco, por isso foi um prazer testemunhar suas criações e improvisos, mesmo a partir de leituras, sentados e restritos a câmeras.
AGORA - Como está sendo pensada a relação dos artistas e do espetáculo com o espectador, nesse formato?
Júlia - Este formato é bastante novo para nós, e creio que só vamos descobrir essas relações com a experiência da exibição. Buscamos o olho do espectador na lente da câmera. Pensamos na divisão em episódios, para que o espectador possa fruir aos poucos da obra, nesse ambiente virtual no qual a concentração por um longo período é um desafio.
AGORA - Quais foram e/ou estão sendo os maiores desafios na readequação do espetáculo para as plataformas digitais/virtuais? O que mudou ao longo do processo? O que permaneceu?
Júlia - Os desafios são imensos! Especialmente por ser uma obra literalmente em transição, que não foi pensada originalmente para o ambiente virtual. Montamos a equipe e a estrutura para ensaiar um espetáculo teatral, e depois adaptamos para uma versão virtual baseada em recursos audiovisuais. O primeiro desafio é não dominarmos esta linguagem e nem ter os recursos técnicos necessários para esta realização. Chamamos para o nosso time uma pessoa que foi fundamental para o processo, o Gabriel Faccini. Mesmo ele sendo extremamente generoso e contar com a parceria do Tomás Piccinini – que a princípio faria nosso cenário e trilha sonora, e posteriormente assumiu as animações 3D, captação de som direto e dividiu a função da montagem –, descobrimos ao longo do caminho que precisaríamos de, pelo menos, mais 3 ou 4 profissionais trabalhando conosco. Eu mesma, para agilizar o processo, assumi a adaptação, produção e diversas outras funções, o que não foi fácil, especialmente pela distância. Estamos acostumados a resolver as questões presencialmente. Nessa situação, resolvemos por telefone, e-mail, motoboy, caronas numa logística que apelidamos “de guerrilha”. A proposição e responsabilidade por esse formato foi minha, em conjunto com o grupo. Na prática, o volume de trabalho foi maior que o imaginado, em parte porque nunca havíamos feito, muito era novidade. Fora todo o contexto que estamos vivendo. Depois de um primeiro momento da pandemia, onde ficamos numa certa suspensão, todas as pessoas do grupo assumiram diversos compromissos de trabalho. Por esse e outros fatores, o tempo para ensaiar e gravar foi restrito. E nós, que estávamos acostumados a ensaiar, a repetir e a refazer, nos adaptamos a esta nova forma. Foi um trabalho inaugural de todos nós nesta linguagem, por isso tão rico. Creio que se tiver que fazer outros trabalhos neste formato, será mais fácil. Da sensação de profunda solidão por trabalhar em situação de isolamento, eu era surpreendida por gestos de parceria e cooperação que fizeram este trabalho ser possível, como sempre é nos projetos artísticos. Da angústia de trabalhar por vezes sem visualizar completamente o material final, pois há coisas que não são possíveis de serem compartilhadas remotamente. De gravar separadamente cada fala, compondo um mosaico extremamente desafiante. Até a alegria de ver um figurino feito com um esforço coletivo de muitas partes no corpo do elenco. O tecido comprado via telefone, costurado por um ator, transportado via aplicativo, montado pela nossa iluminadora, finalmente estendido feito fundo infinito. Entre tantos detalhes que se apresentaram como pequenas batalhas cotidianas na situação que estamos. Estou muito curiosa para ver o resultado final desse quebra-cabeças que nos propomos. Creio que é o tempo que vai dar sentido a todo esse processo e, quando no futuro pudermos contemplar ainda essa obra, o que nos seria inviável com a efêmera linguagem teatral que tanto amamos, muitos sentidos ainda imperceptíveis virão à tona. Para além de uma entrega, esse trabalho é para nós o registro de um tempo, de um grupo de artistas e amigos e de um período histórico transformador. Para além do nosso grupo, para ele ser possível, contamos com o esforço de uma série de profissionais que fazem o projeto Transit ser uma realidade e não esmorecer mesmo perante o desafio que a edição 2020 reservou. Sou grata a todos os envolvidos pela possibilidade de vivenciar e aprender com essa aventura.