Processo de Criação de "Nas Sombras do Coração"
Em 2016, o Goethe-Institut de Porto Alegre (GI) lançou o projeto Transit. A ideia era propor que dois diretores brasileiros montassem, independentemente, um texto criado por um dramaturgo alemão. O Transit, ou o trânsito, se daria em vários sentidos: dramaturgia europeia encenada por brasileiros, paralelo entre duas montagens de um mesmo texto dramático.
O texto escolhido foi “As Trevas Risíveis” (“Die Lächerliche Finsternis”), um script de peça radiofônica de Wolfram Lotz estreado nos palcos em 2015 com grande sucesso no Theatertreffen de Berlim. Os encenadores escalados foram os gaúchos Alexandre Dill e Camilo de Lélis. O portal Agora Crítica Teatral também se envolveu no Transit. Em ação inédita, os coeditores do site acompanharam o processo de criação das duas montagens, participando de ensaios e de reuniões dos grupos. Michele Rolim acompanhou o processo de “As Trevas Ridículas”, de Alexandre Dill (Gupojogo), e Renato Mendonça, “Nas Sombras do Coração”, de Camilo de Lélis (Face & Carretos). Os acompanhamentos foram independentes, sem trocas de informações durante o processo.
“As Trevas Risíveis” valeu o título de dramaturgo do ano na Alemanha para Lotz. O texto foge aos enquadramentos: o próprio autor, em introdução ao script, autoriza a máxima liberdade para os encenadores escrevendo que “mudanças grandes na dramaturgia, cortes, inserção de outros textos, etc. não são apenas permitidos, mas também recomendáveis”. Por outro lado, o alemão usa um jogo de palavras para embaralhar as fontes que o inspiraram (o romance “O Coração das Trevas” (1902), de Joseph Conrad, e o longa “Apocalipse Now” (1979), de Francis Ford Coppola) e afirmar que seu texto é baseado num improvável “’Coração do Apocalipse', de Francis Ford Conrad”.
Com uma estrutura em que se cruzam várias narrativas, “As Trevas Risíveis” basicamente conta a história de dois militares que sobem um rio no Afeganistão em busca do primeiro-tenente Deutinger, que teria enlouquecido. É uma jornada de iluminação em meio à escura e fechada floresta. No caminho, a dupla encontra uma base dos capacetes azuis da ONU, uma missão religiosa envolvida com comércio sexual, entre outros.
Uma cena chave é a de um negro somali que se manifesta para um tribunal alemão, respondendo a uma acusação de pirataria. A questão de quem domina a narrativa é sempre presente, e há inclusive algumas cenas em primeira pessoa, quando o próprio dramaturgo expõe sua crise criativa e os preconceitos que carrega.
A seguir, meus apontamentos sobre a criação da peça de Camilo, que estreou no dia 27 de maio de 2017, no Teatro do Goethe-Institut de Porto Alegre.
Comecei a acompanhar mais de perto o processo de criação de “Nas Sombras do Coração” em janeiro de 2017. Camilo começara a recrutar o elenco em meados de 2016, e já tinham ocorrido algumas leituras dramáticas do texto de Lotz. Cabe detalhar como se deu a escalação, porque o perfil do elenco naturalmente tem importância direta no resultado final. Camilo é um diretor reconhecido na cena teatral gaúcha, e suas premiações têm em comum o fato de as escolhas de melhor espetáculo ou de melhor direção virem sempre acompanhadas do reconhecimento do trabalho dos atores.
Alguns exemplos: em 1991, “Macário o Afortunado” venceu o Troféu Açorianos (premiação concedida pela secretaria municipal de Cultura de Porto Alegre para os destaques de cada ano) de melhor atriz para Ligia Rigo; em 1995, Cacá Corrêa recebeu prêmio de melhor ator por "O Espantalho"; em 1997, “A Bota e a sua Meia” rendeu Açorianos para Lutti Pereira e para Ligia Rigo; em 1996, “O Estranho Sr. Paulo” valeu melhor atriz coadjuvante para Renata de Lélis e melhor ator para Roberto Oliveira. Ou seja, Camilo deve ser qualificado como um bom diretor de atores.
Mas é forçoso observar que Ligia e Lutti eram membros históricos do Face & Carretos, enquanto Renata é filha de Camilo. Havia uma proximidade pessoal e uma afinação estética estabelecidas. No caso de “Nas Sombras do Coração”, encontramos o diretor formando o elenco com atores que estavam trabalhando com ele pela primeira vez, com exceção de Denizeli Cardoso (que estava na montagem de “Macário...”, de 1991) e Luiz Franke (“Landell de Moura...”, de 2012).
Uma indicação prévia que eu tinha era a proximidade de Camilo com textos da língua alemã. Ele dirigiu 11 peças de autores alemães, incluindo textos de Herbert Achternbusch, Tankred Dorst, B. Traven, Werner Schwab e Roland Schimmelpfennig. Chegou a mostrar sua encenação de “A Bota e a sua Meia”, de Achternbusch, no Festival Internacional de Munique. Dorst assistiu em Porto Alegre à “O Estranho Sr. Paulo” e estabeleceu relação de amizade com o gaúcho. Outra característica de Camilo é aplicar elementos brasileiros sobre o texto estrangeiro. Por exemplo, em “A Bota e a sua Meia”, os personagens viraram caipiras que moravam em uma casinha de sapê.
Meus primeiros encontros com o diretor foram em sua casa, no Centro Histórico de Porto Alegre, em janeiro de 2017. Chamavam a atenção dois aspectos: Camilo parecia ter a encenação em sua cabeça, e toda sua vida estava voltada para colher e identificar elementos que tivessem a ver com a saga de Lotz.
Ele me mostrou vários livros que ele relacionava com “Nas Trevas Risíveis” – um deles era “Esqueleto na Lagoa Verde” (1953), escrito por Antonio Callado a partir de uma viagem ao Xingu feita em 1952 para reconstituir os passos da misteriosa expedição do coronel britânico Percy Fawcett em busca de uma civilização perdida (e de seus tesouros, obviamente).
Camilo também buscou via internet reportagens e vídeos de outras montagens de “Die Lächerliche Finsternis”. Mas o núcleo duro da encenação já estava instalado. O espectador, como os personagens de Lotz, mergulharia, se não na selva, na encenação. O diretor chegou a cogitar estender uma lona sobre a plateia, que deixaria escapar pingos sobre a cabeça dos espectadores, qual uma floresta que transpira. Também estava definido que a contrarregragem e a os efeitos sonoros seriam feitos à vista do público.
Desde o início, Camilo destacou a ironia tipicamente germânica de Lotz, como quando um personagem descreve com nojo a preparação de um alimento que não é mais que a tradicional salsicha. Ou a sutil alusão a Berlim em uma cena de abuso sexual, já que o animal símbolo da capital da Alemanha é o urso.
Outro traço fundamental da encenação fica explícito no título da montagem: sem ignorar as implicações políticas, sociais e éticas do texto, que inequivocamente estabelece ligação com questões atuais como a dos refugiados, do fundamentalismo, do isolacionismo de países do 1º Mundo, Camilo elege o coração como o motor da narrativa, por isso “Nas Trevas do Coração”.
Uma das primeiras reuniões de que participei foi com Camilo e com o cenógrafo, arquiteto e diretor de arte Felipe Helfer, que já tinha criado o cenário de “As 4 Direções do Céu” (2015), dirigida por Camilo (na foto acima, Camilo, Renato e Helfer). Abaixo, uma das anotações que fiz do encontro, quando perguntei a Helfer sobre o que já estava definido na cenografia:
- Também não sei como será o cenário de “Nas Sombras do Coração”. Não sei o rumo ainda. Há um elemento intuitivo que já se estabeleceu, e que depois vai se detalhando, inclusive com a ação do elenco e do resto da equipe nos ensaios.
O intuitivo de Felipe, entretanto, já está registrado em vários croquis, que ele traz em uma pasta. O principal deles é um misto de planta baixa, desenho e colagem. No centro da página, o desenho sugere três ou quatro elevações a serem erguidas com tonéis, ladeadas por mastros, estabelecendo um ambiente misto de circo e de tombadilho de navio. Coladas aos croquis, imagens de um combatente do Exército islâmico e de uma galinha preta. Para ajudar na compreensão, o cenógrafo e arquiteto ergue sobre a mesa um arremedo de pirâmide, usando quatro copos, no que é a representação em 3D da ideia inicial de cenário.
- Ó. É isso aqui.
Camilo conta que a dupla debateu sobre como ambientar a peça caminhando no pátio de sua casa:
- Até que um dia a Genoveva (uma galinha preta que Camilo cria em casa) cruzou por nós e nos deu a pista que faltava.
- Ela nos trouxe a cor preta que faltava - completa Felipe. - O preto do petróleo, que é talvez a commoditie que mais move os países desenvolvidos e sua cobiça. O negro do uniforme do EI. Isso desaguou em um cenário com vários matizes de preto, inclusive com uma lona negra cobrindo o chão. Os tonéis surgiram por acaso, em uma liquidação de beira de estrada que cruzei quando viajava para a casa dos meus pais em Santa Cruz do Sul.
A aproximação com Camilo me comprovou uma impressão que firmei durante os 15 anos que fui editor de Teatro no jornal Zero Hora, de Porto Alegre: as condicionantes de produção são decisivas no resultado estético final de um espetáculo. Eram evidentes as dificuldades de se garantir um local de ensaio e mesmo de agendar encontros, visto que os atores e outros membros da equipe tinham de se desdobrar em outras atividades. Camilo tentou contornar isso com ensaios restritos, às vezes individuais. Luiz Franke, por exemplo, por estar envolvido com o evento “Natal Luz”, em Gramado, enviava por vídeos de celular suas partes para Camilo avaliar e sugerir mudanças.
Os ensaios coletivos se iniciaram em março, na Sala Hermes Mancilha da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). A própria condição da sala de ensaio – basicamente um retângulo comprido – já limitava o trabalho de Camilo a buscar descontrair o elenco, encontrar os tons certos de interpretação e mapear as cenas que eram “nós” da encenação, seja por sua dificuldade, seja por seu potencial de influir no desenvolvimento dramático. Lamentavelmente, não se pôde recorrer o expediente de reproduzir a área do palco no local de ensaio. De qualquer forma, como veremos adiante, a disposição dos tonéis do cenário sobre o palco só foi detalhada quando os ensaios chegaram ao Teatro do Goethe-Institut.
No ensaio de 6 de março, com 140 minutos de duração, duas coisas ficaram claras imediatamente: a péssima acústica da sala de ensaio e a disponibilidade de Camilo de incorporar a sua encenação contribuições dos atores. Diego Acauan, que faz o papel do suboficial Dorsch, brincava de colocar o script sob o boné, quando Camilo o ameaçou: “Olha que coloco isso em cena”. Franke concordou: “E ele coloca mesmo”. Em outra cena, Denizeli bateu no peito durante a fala que cita o “pássaro que temos no peito”, e o diretor elogiou o gesto. Quando necessário, ele dava as rubricas e ajudava em alguma fala, mostrando que sabia de cor a criação de Lotz. A questão do preconceito era reforçada nas cenas: Camilo chamou a atenção para o bullying que o sargento sofre do 1º sargento Pellner (Marco Sório), já que o primeiro é da Alemanha Oriental e o segundo, da Ocidental.
A cena do reverendo Parker (Luiz Franke), que libertou as mulheres muçulmanas para mostrarem seu corpo (e provavelmente o venderem também), é descrita com exaltação por Camilo. Ela representaria a grande virada da peça. “É libertinagem. O dramaturgo provavelmente pensou isso, e botou veneno.” No prólogo de Último, que abre a peça, Denizeli disse que quer provocar no público um “silêncio constrangedor”. Camilo concorda e a tranquiliza: “No próximo ensaio, vamos descobrir o que é um silêncio constrangedor”.
Os últimos minutos do ensaio são dedicados a uma conversa franca de Camilo com seus atores, em cima de anotações que ele fez. Sua atitude é de conciliação. Ele diz para os atores ouvirem, refletirem, e no próximo encontro voltarem a discutir as questões. E compartilha algumas inquietações: “O texto é delirante, tem o tom lá em cima. Não posso perder para o texto, não posso ser moderado”. Na saída, ele comenta comigo: “Estamos com o esqueleto. Mas temos de deixar ele bem mais gordinho”.
Marisa Rotenberg (na foto abaixo, ao teclado) já vinha trabalhando técnica vocal com o elenco, e o cantor e compositor Sergio Rojas, que já tinha trabalhado com Camilo também em “Macário”, compareceu a alguns ensaios para buscar o tom que deveria ter a trilha. As ideias iniciais de trilha apontavam para um tratamento minimal, reconhecendo a exuberância de texto e de ação que o script naturalmente trazia, explorando a sonoridade metálica dos tonéis que estariam em cena.
No meio do caminho, Camilo ainda teve de enfrentar a encenação da Paixão de Cristo no Morro da Cruz, em Porto Alegre, durante a Páscoa, evento que ele dirige há 29 anos e que estava ameaçado de não se realizar por cortes no orçamento da prefeitura.
O momento de virada da montagem pode ser determinado quando Camilo e seu grupo se transferiram para o Teatro do Goethe-Institut, aproximadamente duas semanas antes da estreia, para o primeiro dos cinco ensaios lá antes de 27 de maio. O entusiasmo dos atores era evidente. Ainda sem luz, mas com os 30 tonéis já dispostos sobre o palco, era como se eles estivessem em casa – ou pelo menos estivessem se acostumando a uma nova casa.
Quando cheguei ao GI, Zeca Kiechaloski (que interpreta o enigmático Deutinger) me comentou entusiasmado sobre a ideia de que o espaço entre o palco e a plateia seria como um rio, cheio de lixo ocidental, e que a parte inferior do palco seria descoberta e iluminada. Era o segundo ensaio no GI, e a principal preocupação de Camilo parecia ser a duração e o ritmo do espetáculo: “Vamos ter de ficar com no máximo 100 minutos (de duração), senão vou até tirar personagens...”. As portas que ladeiam o palco do Teatro do GI sugeriram a cena do mercado sendo feita junto ao público.
No dia 14 de maio de 2017, Fernando Ochoa, que já trabalhara em outras cinco montagens de Camilo, estava no ensaio para desenhar a luz. Os atores já usavam figurinos quase definitivos, de uniforme camuflado. O reverendo Carter agora entrava em cena com uma sombrinha, provando que um adereço pode fazer toda a diferença. E há um trapiche, onde o suboficial Dorsch chora suas mágoas. O detalhismo chega ao ponto de se discutir se um alemão sabe comer massa enrolando-a com um garfo sobre a colher...
Conversei com Ochoa ao final do ensaio, e combinei de seguir a conversa por email. Algumas de suas respostas enviadas por mensagem:
P - Imaginando: foste convidado por um diretor para fazer a luz de uma peça. Assistes a outras montagens que eventualmente existam na internet? Lês o roteiro imediatamente? Te informas sobre o autor e a peça? Ou preferes iniciar efetivamente a criação ao ver um ensaio?
Ochoa - As coisas acontecem simultaneamente (leituras, vídeos, filmes, fotos, rabiscos), sendo que às vezes é o texto o grande referencial. Ou, então, a orientação da direção. Mas, sim, a fase de ensaios é o ponto de aproximação, de imersão com o espetáculo.
P - A sala e o equipamento que vais contar são decisivos para a luz que vais criar. Como lidas com isso?
Ochoa - Sim, muito. As características do espaço, assim como os equipamentos disponíveis, influenciam e me levam a optar criativamente por fontes alternativas que muitas vezes surgem por insights.
Os ensaios no Teatro do Goethe-Institut eram uma corrida contra o relógio. Havia dois grandes desafios (além de lidar com o nervosismo natural antes da estreia): garantir o ritmo do espetáculo e dar um tratamento adequado às cenas finais da peça. Dramaturgicamente, o final do texto “As Trevas Risíveis” é um problema para o encenador. Podemos dizer que a narrativa explode, da mesma forma como o 1º sargento Pellner quer bombardear o santuário de Karl Deutinger.
Era o momento dos ajustes finais. Primeiro, o fracionamento do prólogo de Último para que o espetáculo ganhasse mais ritmo. Depois, mais destaque no estúdio de efeitos especiais ao lado do palco. O tom de humor e irreverência foi se aprofundando naturalmente durante os ensaios, com uma participação cada vez mais notável dos “marujos” Foques, Steffani e Rodrigues, escalados no setor de efeitos sonoros especiais e participações especiais em cena.
Camilo ainda sentia falta de submeter a montagem a um público “desconhecido”. Na véspera da estreia, promoveu um ensaio geral aberto para a Escola de Espectadores de Porto Alegre (EEPA) e quem atendesse à convocação no Facebook. Havia por volta de 25 pessoas na plateia do Teatro do Goethe-Institut. Depois da apresentação, Camilo trocou ideias com os presentes. E a noite se prolongou com uma reunião com o elenco depois que o público foi embora.
Então chegou o dia 27 de maio. E o processo de criação de “Nas Sombras do Coração” reiniciou após o final da peça. Em reunião no bar do Goethe, algo raro em Porto Alegre: os diretores Camilo de Lélis, Dilmar Messias, Jessé Oliveira e Julio Conte discutindo sobre a peça, de maneira franca. O processo seguiu na tarde do dia 28, quando houve o debate sobre o projeto Transit, reunindo Camilo, Alexandre Dill e a crítica alemã Dorothea Marcus, que veio ao Brasil, convidada pelo GI, com o fim de acompanhar a estreia do texto de Lotz em palcos brasileiros.
Pelos contatos que tive com Camilo depois da estreia, percebi sua naturalidade para incorporar sugestões. Uma cena elogiada por seu potencial cômico, inclusive por Dorothea, que envolve o sargento Pellner violentando um papagaio, que a seguir vira alimento na panela das meninas alegres da missão do reverendo Parker, recebeu um tratamento diferenciado. Em email dirigido ao elenco, Camilo atende ao convite de Lotz e agrega um trecho de texto seu ao original:
TEXTO DO PAPAGAIO (respeitar os parágrafos durante a leitura)
A Amazona estiva é popularmente chamada de papagaio-verdadeiro. Ela é encontrada em toda a antiga "Terra dos Papagaios", hoje chamada de Brasil.
Essa ave pesa cerca de 400 gramas, e possui 45 centímetros de comprimento. Sua coloração é verde, amarelo, azul e branca, não raramente se encontra uma tonalidade adicional de vermelho, fato que tem espantado os estudiosos. Um único papagaio-verdadeiro pode viver em torno de 80 anos.
Como é receptivo, inteligente e possui exímia capacidade de imitar a fala dos humanos, a procura pelo papagaio é considerada grande. No entanto, em muitos casos, a ave é adquirida pelo mercado paralelo, fato esse que propicia o manejo insustentável, práticas de maus-tratos a esses animais e, não raramente, exploração de mão de obra humana para capturá-los. Graças a essa atividade ILEGAL, e à destruição de seu habitat, o papagaio-verdadeiro está em risco de extinção. Extinção... extinção.
PELLNER FALA: - DEI-LHE UMAS PIPOCAS
PAPAGAIO RESPONDE: - Vaiiii tii Fudêêê!!!!
Ao final dessa experiência, me vem à mente uma frase que Camilo disse quando enfrentava vários dilemas de encenação, ainda no tempo dos ensaios na CCMQ: “Renato, me sinto como Pellner e Dorsch, entrando cada vez mais numa floresta escura”. É uma imagem perfeita para um processo de criação aberto, sem modelos prontos, disposto a descobertas.
Diego Acauan e Marco Sório interpretam os militares Dorsch e Pellner no texto de Wolfram Lotz.
Camilo de Lélis já venceu o troféu Açorianos de direção por Macário, o Afortunado (1991), O Estranho Sr. Paulo (1996), A Bota e a sua Meia (1997) e Merdha, Presidentas (2000), além de três Tibicueras de direção de peças infantis. Em 1998, apresentou A Bota e a sua Meia em Munique, sendo elogiado pelo autor Herbert Achternbusch. As Quatro Direções do Céu foi premiada duas vezes no Prêmio Braskem 2015, nas categorias melhor espetáculo e melhor diretor.
Entrevista com Camilo de Lélis por email a Renato Mendonça/Agora – 6/6/2017
AGORA – Como constróis uma encenação? Ela se sugere por si própria ou ficas refletindo até achar um conceito cênico completo?
CAMILO DE LÉLIS - O que vem primeiro é um sentimento de empatia com o texto. Depois vem a procura pelos atores. Comigo, as peças se constroem num diálogo constante, numa dialética de juntar A com B e não vir o C, mas o F ou o Z. Quando as cenas surgem, elas se impõem como contraste e pressão sobre as outras cenas que já existiam, ou as que surgirão a partir deste contraste. E a pressão não se dá só ao redor de uma cena, mas sobre toda a estrutura da peça, de fio a pavio. Essa atitude adquiri em 1987, quando li Diálogos Sobre a Encenação, do alemão Manfred Wekwerth.
AGORA - Já encenaste 11 textos de língua alemã. Há alguma identificação especial com o texto em alemão, talvez em ritmo, em temas, em humor?
CAMILO – “Destino (Schicksal)”. Aprendi a dizer isso em 1998, quando estava em Berlim fazendo curso de alemão. "Mein Schicksal ist ein Regisseur der deutschen stücke zu sein" (“Meu destino é ser um diretor de peças alemãs“). A turma, que reunia gente de toda a parte do mundo, ria muito dessa frase, e até fizemos uma apresentação teatral no final do curso. Se eu achar um motivo, vou sempre esbarrar no acaso. Como foi acaso eu encontrar aos 14 anos de idade, enquanto perambulava pelo centro de São Paulo no afã de meu trabalho de officeboy, uma tradução de O Visitante da Noite & Outros Contos, de um alemão misterioso que morava no México, B. Traven. Anos depois, contando com minha memória, escrevi um roteiro baseado naquele texto e montamos Macário, O Afortunado. Para minha surpresa, lembrara de tudo, não faltava nada àquela estória do índio de Chiapas, que se deparava com a Morte no meio da floresta, um encontro que lhe traria riqueza e também atribulações. Ao longo desse eixo principal (o índio Macário) fui compondo um painel (a la Diego Rivera) com muitos episódios da colonização inglesa, hispânica, francesa e portuguesa na América. Era 1991... E os 500 anos da descoberta de Colombo estavam por estourar. Macário era uma farsa épica. Nas Sombras do Coração é isso também. Acho que inventei o gênero. Assim, respondendo a tua pergunta, posso dizer que os textos alemães, desde o início, me trouxeram para a América.
AGORA - No tempo do Face & Carretos, vocês eram uma equipe entrosada. Nos últimos anos, tens variado os elencos. Como lidar com essa situação?
CAMILO - No tempo do Face & Carretos? A grife continua viva, por isso está na logomarca - since 1982. Tipo calça Lewis Strauss. Digamos que o Face & Carretos é antológico e emblemático. Houve inclusive pesquisas de alunos do DAD (Departamento de Arte Dramática da UFRGS) sobre a trajetória do grupo. O Itaú Cultural publicou na internet um ensaio que dava o grupo por extinto em 2000. Então houve vários "tempos". Mas dá pra resumir em três épocas. A fase heróica foi quando morávamos em comunidade urbana. Eram até 12 pessoas, tínhamos tudo dentro da equipe: figurinista, iluminador, cenógrafo, aderecista, diretor e atores e atrizes. Foi a fase de O Ferreiro e Morte; Peter Pan; Alice no País das Maravilhas; Ópera do Invasor, mas o auge foi com Macário, o Afortunado, que alcançou 17 premiações entre 1991 e 1993. Depois, a fase dramática, em que se reduziu o número de componentes a quatro ou cinco, no máximo. Foi quando a Cia Face & Carretos alcançou mais renome e chegou a se apresentar em países lindeiros e até na Alemanha. O Estranho Sr. Paulo; Uma Chance para Feuerbach; Mehrda, Presidentas; A Bota e sua Meia foram o resultado dessa época. Por último a fase da fênix, que é um renascimento, depois de uma pausa de quase dez anos em minhas direções (exceto a Paixão de Cristo do Morro da Cruz). Ocorreu que com Mehrda, Presidentas eu achava que havia concluído o que tinha para dizer. Fase depressiva. Retornamos, eu e Renata de Lélis, com Milkshakespeare (2010), de Julio Zanotta, pela via colateral dos autores gaúchos, os quais sempre encenei paralelamente aos autores alemães (por exemplo, os dramaturgos Júlio Conte, Hercules Grecco, Walmir Ayala, Ivo Bender e eu mesmo). Depois, O Incrível Padre Landell, de Grecco (2011/12), O Monstro de Olhos Verdes, de Ayala (2013/14). Voltando aos alemães, em 2015, encenei As Quatro Direções do Céu, de Schimmelpfennig, e, agora, As Trevas Risíveis, de Wolfram Lotz, que chamei de Nas Sombras do Coração.
Quanto aos elencos variados: são da última fase, pois as fases legendária ou dramática não voltam mais...
AGORA - O trabalho de atores é certamente um traço de tua trajetória. Como saber qual é o certo para qual papel?
CAMILO - Olho de diretor. Conheci o João França numa conversa informal e pensei “Está aí um nariz emblemático”. Só falta tirar um ator detrás desse nariz. E assim foi - ele agora é um dos atores mais requisitados do teatro e do cinema gaúchos. Houve entre 1996 a 1999 quatro atores que foram premiados por peças minhas: Roberto Oliveira; Cacá Correa; Lutti Pereira e Fernando Kike Barbosa. Atrizes: Lígia Rigo, com um monte de premiações, e Renata de Lélis, também. Me considero um treinador de atores, um sparring, um coach de atores... É isso. Sou de ficar em cima, cochichando no ouvido, me torno uma entidade. Mas nem sempre é fácil, às vezes o cara vem com neuroses profundas de trabalhar com outros encenadores.
AGORA – Citas Na Selva das Cidades (1969), do Oficina, como uma das tuas primeiras impressões fortes com o teatro. Também falaste que tuas origens teatrais bebiam na fonte de Oswald de Andrade e de Mario de Andrade. A antropofagia é uma característica forte de teu trabalho?
CAMILO - As pistas estão, sim, na Semana de Arte Moderna, que sempre me impressionava nas aulas de literatura quando de minha passagem por São Paulo, onde morei na adolescência de 1968 a 1970. No final dos anos 1960, aquela estética de 22 experimentava um retorno estético e temático por meio da contracultura e dos movimentos pseudo-hippies do Brasil. Essas estética e temática eram o melhor que se tinha para enfrentar a ditadura, se constituíam em uma opção às peças duras de vertente pseudocomunista do Vianninha e de Guarnieri, ente outros. Mesmo a dita "Nova Dramaturgia" de Augusto Boal e Zé Vicente, entre outros, era bastante chata para mim. O mais alto que eles iam era falar de droga ou homossexualismo. Por isso, Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mario de Andrade e Menotti del Picchia, e suas produções na poesia, literatura e algo para o teatro, falavam o que eu queria ouvir e o que eu achava que tinha a ver comigo, com minha vida de coloninho que chegou na cidade grande, que engraxava sapato, que era espantado e fascinado pelo morro, lá na Vila Vargas, atrás do Morro da Cruz (bairros na zona leste de Porto Alegre). O humano e o fantástico me pareciam bem mais amplos que o aspecto político e sociológico, viés que peças como as do Vianninha propunham. Eu vivia um mundo também mágico, sensual, colorido e sexual. Um mundo antropofágico, e aqui nem vou entrar na vertente religiosa ou filosófica de minha formação. Na selva, no xamanismo, na ayahuasca. Essas referências nunca vão sair de minha produção poética, na qual eu incluo minhas encenações. São poesias tridimensionais.
AGORA - Como se deu a escalação de Nas Sombras do Coração?
CAMILO – Ultimamente, minha escalação de atores sempre dá prioridade ao physique du role pois estou tendendo mais ao naturalismo (ou realismo) devido a meu gosto por imagens cinematográficas. Isso faz com que o elenco de Nas Sombras do Coração tenha atores entre 27 e 63 anos. Temos dois negros no elenco, Jorge Foques, que é músico, sonoplasta e performer, e a atriz Denizeli Cardoso. Nós temos atores negros, portanto é justo chamá-los para papéis como o do pirata da Somália - dá muito mais credibilidade. E, também, devido à reivindicação de espaço de trabalho exigido pelos atores negros. É o que eu penso que deveria ser feito...
AGORA = Em tua encenação de As Trevas Risíveis, os explorados aparecem em cena. Podemos lembrar do músico e da cantora cega, das mulheres do missionário, do vendedor do rio, dos negros escravizados no posto dos capacetes azuis. Mesmo o papagaio parece ser uma representação desses explorados. Podes comentar essa decisão de direção?
CAMILO - Esse é o lado "Macunaíma" do espetáculo. Os explorados são (nem diria de uma minoria, pois, no Brasil, se trata da maioria) os afrodescendentes e caboclos em geral. Então já que temos a disponibilidade de artistas dessas etnias, e a peça trata disso, é isso que devemos buscar: dar-lhes voz e representatividade. O papagaio é o próprio Brasil metaforizado. Entretanto, há aqui uma exceção inversa. O comerciante do rio - Bojan Stoykovick -, não é negro, é talvez um afegão ou, pelo nome, um habitante do leste europeu. Aqui temos um caso raro de um negro representar um branco, sem se valer de artifícios de maquiagem. Depois da estreia, tornei essa minha decisão mais explícita estabelecendo um distanciamento brechtiano quando Denizeli diz "a vocês do público deve parecer estranho que eu, uma atriz negra, represente um personagem branco, mas sou eu que estou aqui, portanto...". Tomei essa decisão porque não é novidade que atores brancos representem papéis de personagens negros – e agora isso é problematizado pelas reivindicações dos negros. Mas o inverso não é questionado. Um ator negro pode e deve ter o direito de fazer um branco no palco, ao menos no teatro contemporâneo, que permite essas discussões.
NAS SOMBRAS DO CORAÇÃO
Direção: Camilo de Lélis
Elenco: Denizeli Cardoso, Diego Acauan, Luis Franke, Marco Sório, Jorge Foques Participação especial: Zeca Kiechaloski
Operadores de som, luz e músicos ao vivo: Jorge Foques, Biel Souza, Diego Acauan e Diego Stefanni
Trilha sonora original: Sergio Rojas
Cenografia: Felipe Helfer
Cenotécnica: Diego Stefanni
Criação de luz: Fernando Ochôa
Figurino: Fabrizio Rodrigues
Preparação vocal: Marisa Rotemberg
Preparação física: Renata De Lélis
Maquiagem: Cassiano Pellenz
Assessoria para manipulação de objetos: Adriane Azevedo
Design gráfico: Rafael Franskowik
Fotografia: Gerson Oliveira