HAMLET - PROCESSO DE REVELAÇÃO
Renato Mendonça (RS), em Porto Alegre, 25/05/2016
Montagem dos Irmãos Guimarães mistura performance e atuação para mediar obra de Shakespeare
O carioca Emanuel Aragão atua e assina a dramaturgia de "Hamlet - Processo de Revelação", em cartaz no Palco Giratório 2016

Ser ou não ser Hamlet?

Já quase ao final das quase duas horas e meia de apresentação do monólogo Hamlet – Processo de Revelação, o ator Emanuel Aragão lê uma lista de coisas que não teria coragem de falar em público. Entre seus desejos ocultos está o de que a peça que ele estrela mude radicalmente a vida de todos que estão na plateia - e a dele também. No caso deste que escreve, infelizmente não. Mas Hamlet – Processo de Revelação levanta uma série de questões, ligadas à encenação, à relação entre performance e atuação e à mediação da obra de Shakespeare, que garantem a relevância da montagem dos Irmãos Guimarães (DF).

Basicamente, trata-se de uma conversa sobre Hamlet. Acompanhado em cena apenas de uma poltrona e de 800 tijolos amontoados a um canto, Aragão recebe o público sentado à beira do palco e avisa que as luzes ficarão acesas para que ele possa ver o rosto de todos. Percebe-se a busca pela intimidade: o ator exercita sua empatia, põe abaixo os tijolos da quarta parede, assume uma atitude de quem está disposto a debater com o público, especialmente quando oferece à apreciação dos espectadores sua tradução do solilóquio que inclui a célebre pergunta “Ser ou não ser?”. Na sessão do dia 24 de junho, o público aderiu à proposta com tais intensidade e insistência que um dos diretores chegou a interferir, pedindo que o ator superasse aquele instante e seguisse adiante.

A contribuição em termos de mediação é elogiável, e Hamlet de fato é revelado ao público. Aragão tem o cuidado de narrar uma sinopse da trama, e ao longo da peça vai encaixando trechos de algumas cenas e solilóquios de Hamlet, trafegando sutilmente entre a atuação e a performance, valorizando o texto de Shakespeare com uma paixão pessoal evidente. O interesse despertado no público pode ser exemplificado pelo comentário de uma espectadora, imaginando como seria proveitoso apresentar consecutivamente em duas noites seguidas o Processo de Revelação e o texto original de Shakespeare. De lambujem, o público toma conhecimento dos questionamentos que acompanham a montagem de um texto dramático, entre eles a tentativa de descobrir as intenções do autor e, principalmente, como se dá a integração entre a obra a ser encenada e a bagagem emocional dos artistas.

Nesse ponto, a montagem desperdiça uma grande chance. Aragão começa a peça observando que naquele exato momento um velho na China pensa em se suicidar. A rotina faz o ancião esquecer o plano. Ao final, num espelhamento evidente, o ator afirma que uma chinesa de 30 anos está indo visitar o túmulo da mãe no cemitério. Nada disso é gratuito: a peça também é um processo de revelação do próprio artista em cena. Por entre a descrição das agruras de Hamlet, Aragão lembra a morte do pai 11 anos atrás, de como hesitou ao entrar no quarto onde estava o cadáver, de como ele e seu irmão cumpriram calados uma viagem de carro até a cidade onde seria feito o enterro. Essas situações encontram eco em cenas da peça original: a hesitação do herói shakespeariano, o trajeto silencioso de Hamlet e de seu amigo (quase irmão) Horácio para conferirem a aparição do fantasma do pai do príncipe da Dinamarca. Nesses momentos, não por acaso quando o Aragão exibe sincera emoção, Processo de Revelação exibe potencial a ser melhor explorado.

Da mesma forma, os tijolos. O entulho promete estrelar uma ação dramaticamente contundente, mas serve apenas para que Aragão o estilhace durante alguns minutos, como a sugerir que talvez só a exaustão física encaminhe um dos tantos dilemas que Hamlet (e o ator) enfrenta. A intenção seria talvez reforçar a ponte entre a ficção e a vida real – o tijolo destruído por força dos conflitos de Hamlet e da aflição do ator vira pó, que vira tijolo, que vira sala de espetáculo, que abriga Hamlet e Aragão - e a todos nós.

Entre tantos elementos e intenções postos, numa encenação que corajosamente se propõe ao risco de ceder parte do controle do resultado final ao público, Processo de Revelação mantém com o texto original uma semelhança de propósitos que é fundamental: o amor pelo teatro e a crença de que o palco pode evocar, elaborar e até encaminhar conflitos humanos. É da loucura (ou da atuação) que Hamlet se vale para dizer as verdades, é através da companhia de teatro que visita o palácio real que ele finalmente se convence da culpa de seu tio Cláudio, é encenando Hamlet que Aragão faz sua transição entre o velho que esquece o suicídio e a mulher que cria coragem para reverenciar sua mãe morta. E é assistindo ao Processo de Revelação que o público pode aprender a diferença entre entretenimento e arte de transformação pessoal.

Em uma das últimas falas, Aragão diz “Acho que não foi o suficiente”. Talvez nunca seja, e nossos tormentos assumam a forma de fantasmas que nos acompanharão ao longo da vida, insistindo em cobranças tal como fazia o espectro do pai de Hamlet. Parece que a morte, e não a resolução dos conflitos, é o destino final da viagem. E o teatro é um bom companheiro nesse processo de revelações.