VENDO GRITOS E PALAVRAS - UM RECITAL
Ruy Filho (SP), em São Paulo, 05/12/2015
Denise Stoklos e Julio Cortázar se desencontram no palco
Em "Vendo Gritos e Palavras", Stoklos troca contundência artística pela repetição de fórmulas

A felicidade é um estado relativo ao homem

Denise Stoklos é dessas artistas em que os trabalhos devem ser assistidos com atenção. E nada pode conter mais isso, frente à grandeza de sua expressão, do que elevar o olhar ao sentido crítico, propondo-lhe, assim, um debate provocativo. Para tanto, é fundamental conviver com suas obras, seu repertórios, e assim perceber as mudanças de direções e interesses, ainda que, aos leigos, possam parecer pequenos detalhes casuais. Só que nunca os são.

Nos últimos trabalhos, incluindo o atual Vendo Gritos e Palavras, Denise se volta à palavra como instrumento de construção cênica. Propondo ir além da mímica e do gestual mimético, a corporeidade dada à imagem revelou Denise, desde o início, uma artista absolutamente única. Parâmetros de inventividade para muitas gerações, seu trabalho revelou a cena contemporânea, em obras emancipadoras. Assim, Denise Stoklos tem o apreço contínuo das gerações mais jovens. Sempre redescoberta por novos interessados, é ela alguém em constante evidência e inesgotável.

No entanto, como dito, é preciso ser mais generoso do que somente pelo uso dos elogios previsíveis. A investigação de seu trabalho implica em superar as relações emocionais e se atrever a ser verdadeiramente o ruído entre as vozes entusiastas e aplausos antecipados. Nesse sentido, alguns aspectos surgem como boas questões à reflexão.

O primeiro e mais urgente é a aproximação, por vezes demasiada, entre o trabalho atual, Vendo Gritos e Palavras - um Recital, e um dos seus anteriores, Preferiria, não? (2011). Ambos se valem do palco esvaziado, com movimentos de luzes que conduzem à diferentes estados ao que é dito, e preenchidos por estantes de partituras, onde os textos estão disponíveis à artista para serem lembrados. A semelhança da encenação é tamanha que é possível se confundirem, salvos pelos textos, e caso o espectador conheça bem cada escritor, a saber, Julio Cortázar e Herman Melville, respectivamente.

Não há nos espetáculos quaisquer escolhas que ressignifiquem os autores em universos próprios. Ao construir obras idênticas, Denise Stoklos determina igual semelhança aos universos dos escritores; o que, ao fim, é um tanto simplista. Ambos merecem tratamentos maiores para além do reaproveitamento de ideias; ambiências cênicas específicas e não similares, visto que, por mais próximos que possamos reunir seus interesses e pensamentos, um século os separou, e isso significa muito. Mas, o foco dessa resenha é mesmo Vendo Gritos e Palavras - um Recital. Então, passo a me limitar mais a ele.

O espetáculo, na forma do recital enunciado, realiza-se por micronarrativas de Julio Cortázar, um dos mais inventivos escritos do século XX. Entre o declamatório e a previsibilidade da construção do gesto, Denise enfraquece tanto a ela quanto ao autor. Falta à artista definir seu papel nessa intersecção. O que lhe exigiria revisar mais profundamente seu existir como mediação.

É preciso compreender o interpretar, representar e apresentar como mecanismos distintos. No primeiro, o performer oferece ao espectador seu entendimento sobre aquilo que traz, a partir de escolhas e conclusões pessoais; ele é o filtro inevitável e a expressão pessoal, portanto. Não é esse o caso, em Vendo Gritos e Palavras. Denise, pouco traz de si nos textos, salvo, talvez, a escolha pelos trechos. Todavia, isso é tão subjetivo quanto os próprios entendimentos por ela dos textos em si.

No segundo, o representar, o performer se coloca ao serviço daquilo que traz, tornando-se ele mesmo o argumento da validade daquilo que representa, sem impor-lhe conclusões. Assim, o performer é ele mesmo e também aquilo trazido, de modo que ambos permaneçam presentes e fortalecidos. Também nesse aspecto Denise se revela frágil. Exposta mais como ela mesma do que como Cortázar, não chega a construir a representação ao escritor. Permanece como a limitação ao maneirismo, do exibicionismo de uma linguagem que já não surpreende em apreço técnico, dado a inevitável passagem do tempo e o chegar da idade ao corpo, enquanto o escritor serve de pano de fundo ou argumento para a exibição.

Resta-lhe, então, a terceira via, o apresentar, quando o performer anula a qualquer sentido maior e apenas traz algo sem tanta profundidade ao trazido, superficial, introdutório e circunstancialmente. Assim, Denise nos apresenta Cortázar, dentro desses limites mínimos, e isso é tudo. Em uma espécie de coleção de micronarrativas, o escritor é oferecido como que por um catálogo demonstrativo de ideias, uma coleção reducionista e banal de suas obras. O que é decepcionantemente pouco, tratando-se de ambos. Apresentado como está, Cortázar surge como o escritor de boas sacadas e trocadilhos; Denise, por sua vez, é a show-woman, divertindo-se em um stand-up intelectualizado. O que poderia ser um encontro explosivo, limita-se a algo trivial, nada estimulante e pouco criativo.

A proposição da récita, essencial argumento ao espetáculo, torna-se demasiadamente lúdica. As corridas em círculo para nos avisar do final e início de cada micronarrativa; a oratória exagerada, em que a voz não propõe um estilo, e é utilizada aos gritos sem qualquer intenção justificável, desde a primeira palavra, impondo certa histeria ao discursado e nenhuma urgência, como supostamente é pretendido; os gestos limitados aos desenhos ilustrativos que pouco condizem com a imensa capacidade de criação da artista. Tudo se reúne no sentido mais obvio de facilitar e traduzir ao espectador cada segundo do espetáculo.

Se no espetáculo Preferiria não?, a partir da obra Bartleby, o Escriturário, de Herman Melville, assim como em Carta ao Pai, baseado em Franz Kafka, Denise possuía os apoios dos personagens, agora, em Vendo Gritos e Palavras, essa possibilidade desapareceu, e a presença de personagens parece dificultar muito seu trabalho aprisionado-a em tipos e tentativas. Ocorre que, ao não haver um outro ao complemento ou antagonismo, a artista acaba sustentando nela mesma os argumentos, subvertendo a ideia da palavra como centralidade, já que a efemeridade de cada cena impõe-lhe a condição frontal de existência no decorrer das fraturas narrativas tão mal estruturada e limitada a pequenas esquetes. Ao se expor apenas como personalidade e não como pessoalidade, portanto, Denise impede sua presença de ser o instrumento construtivo. Assim, passamos a assistir à performer em suas mais variadas formas de exibição, e também catalogar. E o narcísico supera na artista o existir como presença cênica.

É curioso que Denise tenha se apoiado no filósofo Giorgio Agamben, sobretudo em sua obra Homo Sacer: o poder soberano e a via nua. Nela, Agamben explora a condição do homem estar submetido à sociedade, através de um outro estado de presença política, qual denomina biopolítica (conceito apropriado de Michael Foucault). A curiosidade está na fuga de Denise se submeter ao espetáculo, limitando-o a sê-lo, sem preocupações maiores em somar pelo seu existir outro estado de experiência estética e narrativa ao espectador.

Desse jeito, é possível traçarmos um paralelo onde chegar-se-á à exata negação do conceito agambeniano qual a artista investigou. Ao negar o espetáculo como estrutura espetacular, ao submetê-lo à sua presença unicamente, Denise o compreende pela dimensão de sua identidade, como se essa fosse livre para escolhas e respostas, o oposto do que a biopolítica de Agamben afirma. Não cabendo mais ao indivíduo a condição de sustentar sua independência em sociedade, até mesmo ao limite de não mais escolher sua própria morte, a vida nua expõe a imposição do existir do indivíduo como algo manipulado exteriormente a ele, cuja liberdade se dá no entendimento dessas forças e no confronto com as mesmas. Denise domina a cena sem confronto, impõe sua presença, não se permite ser a consequência do descontrole narrativo, espetacular, muito menos das palavras de Cortázar. Então a aproximação entre Denise e Agamben está mais na anulação entre um e outro do que no compromisso pela afirmação das ideais entre ambos.

Por fim, se Denise não se encontra profundamente com Julio Cortázar, se distorce sem negar a perspectiva de Giorgio Agamben, se não se amplia como artista, e se o espetáculo é a redundância conceitual e estética do anterior, qual a questão do trabalho? Talvez seja o fato de que, ao nos depararmos com tantas perguntas, ainda assim o espetáculo exista mais pelo passado da artista do que pelo presente.

De alguma forma, o novo trabalho de Denise Stoklos grita a fragilidade daqueles que possibilitam as produções recentes, sejam quem forem, ainda limitados aos encontros de ontem e poucos seguros aos de amanhã. Mas não é essa a função maior dos apoiadores e instituições, olhar profundamente ao amanhã? Talvez, não. Afinal, na noite de estreia, ainda que boa parte da plateia estivesse adormecida e as pessoas se encontrassem no saguão com certo tédio disfarçado, Denise parecia satisfeita. Fazer os artistas felizes, enquanto fingimos nossas próprias felicidades. Então, que seja isso. Porque a felicidade é algo que se conquista. Denise conquistou a dela, e ninguém tem questionado o quanto nela ainda é real. Parece que está tudo certo, e que o teatro vai bem. Basta fazermos Denise feliz.