Golpe radical na intolerância
O genocídio promovido por Hitler e seus seguidores é um tema bastante explorado pelo cinema, pela literatura e pelo teatro. A ópera P-u-n-c-h, no entanto, leva ao palco uma parceria dos nazistas ainda pouco conhecida: a (ir)responsabilidade corporativa da empresa IBM, que colocou sua tecnologia de classificação de dados a serviço do Terceiro Reich.
P-u-n-c-h destaca-se por sua ousadia e contemporaneidade. O gênero ópera já se caracteriza como uma criação interdisciplinar, mas a montagem, que tem direção geral, música e concepção assinadas pelo porto-alegrense Christian Benvenuti, amplia o conceito ao propor inovações como a utilização da performance, além de provocações estéticas como o uso de uma guitarra em cena. A direção cênica é de Alexandre Vargas, cofundador do grupo Falos & Stercus e coordenador e curador do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre.
O eixo principal é o livro IBM and the Holocaust (2001), do jornalista e ativista de direitos humanos Edwin Black. Publicado em mais de 40 países, IBM and the Holocaust revela que a colaboração entre a empresa americana e o regime hitlerista iniciou-se nos anos 1930 e se estendeu até a II Grande Guerra, com o fornecimento de equipamentos e de know how que seriam utilizados na perseguição, prisão e extermínio de milhões de judeus, ciganos, homossexuais, prisioneiros políticos e tantos quantos o nazismo considerasse entraves para a afirmação de uma raça superior. Na construção do espetáculo, foram aproveitadas canções, poesias e cartas escritas em guetos e campos de concentração, assim como documentários e discursos de chefes de Estado realizados durante a II Guerra Mundial.
P-u-n-c-h está organizada em três atos: A corporação, O gueto e O campo, explorando três significados em inglês da palavra “punch”: “inserir informação ao pressionar um botão ou perfurar um cartão”, “conduzir gado, empurrando-o com uma vara” e “golpear com o punho”. Quem não sabe de antemão sobre o que trata a ópera tem dificuldade em compreendê-la na sua totalidade, embora talvez seja essa a intenção da encenação: convidar o público a acompanhar a narrativa através de imagens potentes, explorando outras formas de a palavra alcançar o espectador, como quando projeta textos em uma tela no fundo do palco. Em relação a música, temos quatro solistas nas laterais de cena e a orquestra ao centro que executam de forma precisa as canções sob a batuta de Benvenuti.
Quando trechos de textos são ditos no palco fica visível que não há homogeneidade no elenco e muitas das interpretações não são eficientes. O que é compreensível dadas as dimensões de um projeto que envolve 70 pessoas direta e indiretamente, entre atores, bailarinos, músicos e coralistas, que se distribuem pelo palco pelas coxias do Teatro Renascença, em Porto Alegre. Porém, se a interpretação não é de todo satisfatória, P-u-n-c-h encontra na performatividade dos corpos em cena a sua redenção. As coreografias assinadas por Silvia Wolff deixam evidente que há uma busca individual e, ao mesmo tempo, coletiva em cada gesto. Cada gesto e deslocamento é muito bem desenhado.
Um dos pontos altos da montagem é quando alguém do elenco tem seu cabelo raspado em cena, repetindo um ato que servia para descaracterizar a identidade dos prisioneiros nos campos de concentração. É quando a ficção e a não-ficção se justapõem, emprestando radicalidade à encenação e introduzindo elementos de performance à cena. Outro destaque é quando os cantores e o próprio regente (Benvenuti) avançam para a cena e extrapolam sua condição de instrumentistas, dão falas, agregando novamente traços performativos à montagem.
A conclusão dos 100 minutos de função tem impacto proporcional à ambição do espetáculo: corpos nus e desamparados assomam à frente do palco e encaram o público como se esperando pela morte, vulneráveis a toda violência. Talvez P-u-n-c-h funcionasse melhor se contasse com um elenco mais experimente, mas podemos afirmar que a montagem quebrou paradigmas no Estado. O pioneirismo é uma tarefa difícil.
Próximas críticas a serem postadas: As Quatro Direções do Céu
P-U-N-C-H
Direção geral, música e concepção: Christian Benvenuti
Direção cênica: Alexandre Vargas
Direção coreográfica: Silvia Wolff
Direção de vídeo: Eny Schuch
Cenografia: Élcio Rossini
Criação de luz: Maurício Aguiar de Moura
Figurinos: Carolina Job Di Laccio, Fernando Schmidt (máscaras)
Direção de produção: Luka Ibarra/Lucida Desenvolvimento Cultural
Figurinista assistente: Karenina Benvenuti
Assistência de coreografia: Matina Banou
Elenco de intérpretes/criadores: Alessandra Souza, Alexander Kleine, Andrew Tassinari, Consuelo Vallandro Barbo, Cris Bocchi, Débora Jung, Gabriela Guaragna, Giuli Lacorte, Guilherme Conrad, Gustavo Duarte, Jaime Ratinecas, Jeferson Cabral, Julia Bueno Walther, Luana Camila, Luciano Souza, Matina Banou, Viviane Gawazee
Músicos: Adolfo Almeida Jr., Cláudia Schreiner, Eliseu da Silva Rodrigues, Filipe Müller, Gabriela Vilanova, Huberto Gastal Meyer, Paulo Bergmann, Philip Gastal Meyer, Vinícius de Moraes Nogueira
Cantores: Adriana Deffenti, Igor Ruschel, Lucas Alves
Regência: Christian Benvenuti
Participação especial: Coral da UFRGS - Regência de Lucas Alves
Duração: 100min
Fotos: Adriana Marchiori (grupo de bailarinos) e Ricardo Lannes (geral do palco)
Recomendação etária: 14 anos