MRITAK
Consuelo Vallandro, Porto Alegre (RS), 30/07/2024
Cia Stravaganza comemora seus 36 anos com remontagem da última peça escrita, dirigida e encenada por Luiz Henrique Palese
Foto: Vilmar Carvalho

A fome de vida do Stravaganza

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

Neste último dia 12 de junho de2024, a Cia. Stravaganza, criada em 1988 por Adriane Mottola, Luiz Henrique Palese e Cacá Corrêa, comemorou seus 36 anos de abundante e rica vida. Não cabe a este pequeno texto a ousadia de tentar contar a história deste grupo, que segue resistindo em meio às crises econômicas do setor. A companhia se faz um dos patrimônios vivos do teatro gaúcho após ter criado e produzido mais de 30 espetáculos, além da realização de inúmeros projetos e de uma conquista rara almejada por tantos no meio da cena teatral de nosso estado: a sede própria, o Estúdio Stravaganza, uma referência para outros grupos de teatro.

Tampouco caberia a estas parcas linhas tentar abarcar a grandeza do legado e da genialidade do autor da dramaturgia, Luiz Henrique Palese, um inimigo confesso da mediocridade cuja partida precoce deste plano nos deixou a todos órfãos de um artista que se construiu enquanto ator, diretor, cenógrafo, figurinista, iluminador, dramaturgo e programador visual por meio da marca de sua trajetória traçada sobre a multidisciplinariedade e o experimentalismo levado à cena. Vamos focar em falar apenas de Mritak, uma remontagem justamente da última peça escrita, dirigida e encenada por Palese dois anos antes de seu falecimento, a qual ganhou nome e roupagem nova em 2024 para compor e abrilhantar a programação de aniversário da Companhia. A peça original foi escrita e encenada pela primeira vez em 2001 e se chamava Como Vivem os Mortos.

A nova montagem da obra se moldou pela proposta de uma experiência cênico-gastronômica, idealizada e produzida pelo ator e – mesmo que não se defina assim – chef Duda Cardoso. Conforme anunciado pelo grupo no site de ingressos, os quais se esgotaram rapidamente, neste espetáculo o público é convidado a participar da peça, que se desenvolve durante um jantar em três tempos: entrada, prato principal e sobremesa, sendo inspirado na gastronomia indiana e preparado pelo próprio Duda, que assina a direção artística, a produção da peça e também atua ao lado de Janaina Pelizzon e Lauro Ramalho, sob a direção da mestra Adriane Mottola.  

De fato, o que percebi ao adentrar o Studio Stravaganza foi um convite à imersão para além do paladar. Ao lado do café do Studio, de onde saiam os comes e bebes, sentada diante de mesas bem guarnecidas de toalha, prataria e todo aparato de um restaurante, a plateia era recebida como em um restaurante e organizada em uma semi-arena em torno da cena, demarcada por uma espécie de tapete e alguns objetos com temática hindu. Neste ambiente vai se tecendo a denominada na filosofia experiência estesiológica, a qual constrói uma relação cênica através de estímulos multissensoriais para além da visualidade dos figurinos e cenário e objetos indianos, como o aroma de incenso, a musicalidade da trilha sonora indiana, temperados com o sabor do chá e, mais adiante, do delicioso Tikka Masala servido pelos atores.

Um apontamento pontual e necessário sobre a sequência servida: é preciso ressaltar que Duda Cardoso é um amante do universo gastronômico e já vinha desenvolvendo, paralelamente aos trabalhos artísticos, uma pesquisa na área da gastronomia, tendo recentemente concluído seus estudos em culinária no Instituto Gato Dumas, em Buenos Aires. Os seus pratos apresentaram uma leitura mais amigável ao paladar brasileiro da culinária indiana, com uma abordagem menos apimentada, buscando ainda a convergência de uma deliciosa lentilha de entrada, por exemplo, porém trazendo a identidade oriental em seu sabor mais exótico no prato principal e na sobremesa.

Entre uma garfada e outra, observei o público, gradualmente deslocado do clima de restaurante e de suas conversas em voz alta para ser fisgado pelos sentidos, sendo convidado a ouvir esta história e mergulhar no universo tragicômico de Lal Bihari, cuja vida real inspirou a obra de Palese. Lal foi um pequeno comerciante indiano declarado morto por um primo. Ele atravessou uma jornada de mais de 20 anos para driblar a burocracia em seu país e provar oficialmente que estava vivo. A sua resiliência o levou a buscar até formas bem-humoradas de provar sua vida ao estado: ele tentou ser preso, concorreu a eleições, processou pessoas e, ao descobrir outros “mortos” como ele, fundou a “Associação das Pessoas Mortas”.

Evidentemente, o texto já traz em si uma reflexão sobre o sentido que damos à vida. Segundo o próprio Stravaganza, esta obra é frequentemente revisitada pela companhia por trazer uma mensagem ainda atual que se funde com o seu próprio ofício enquanto artistas: uma eterna luta para se manterem vivos e atuantes. Assim, neste banquete de aniversário, faz-se latente destacar um processo digestório de reflexão sobre Mritak (palavra que justamente significa “morto”): ouvir a história de luta de um indivíduo por ser considerado vivo enquanto comemos é deixar-nos levar por outros caminhos e sinapses, as quais se constituem por meio de um dos mais prementes instintos de vida que os seres vivos na Terra têm: a fome. Essa que fome nos contamina de tal forma a recepção enquanto público que, depois da sobremesa, vem-nos uma gula de viver outras noites como essa, onde possamos deliciar os ouvidos, os olhos e a boca com a beleza, a tristeza e a ironia da vida, e ver se aprofundar ainda mais esta relação degustativo-dramatúrgica entre percepção da cena e comida, que já foi petiscada na literatura por Proust no imortalizado momento do chá com Madeleine de Em Busca do Tempo Perdido.

Por fim, considerando o contexto maior em que Mritak foi montada e o que carrega de significado a celebração da Cia. Stravaganza como um todo, é preciso dizer: Palese, assim como Lal, consegue se provar vivo para cada espectador através deste seu legado ímpar de investigação da linguagem teatral e dos diversos estilos de jogo, centrando a marca do seu coletivo no processo criativo sobre um ator-criador que busca recriar a tradição fundindo-a com propostas contemporâneas de atuação, bem como caminhos originais para a linguagem teatral. O sabor desta imortalidade está traçado em cada nova criação assinada pela companhia que ele ajudou a criar. Que esta fome nunca seja plenamente saciada. Vida longa ao Stravaganza!

 

Foto: Robledo Magalhães