TERRA SEM MAPA
Pedro Bertoldi , Porto Alegre (RS), 08/12/2023
Espetáculo debate a migração com dramaturgia permeada pelas memórias coletivas de quem precisou partir
Foto Vilmar Carvalho

Memórias coletivas sobre a migração

Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado

Enquanto escrevo este texto, centenas de milhares de pessoas estão deixando suas casas para cruzar fronteiras. Algumas delas estão atravessando oceanos em balsas precárias torcendo para que as ondas sejam generosas durante o percurso. Escrevo pensando nas crianças de Gaza que não sabem se terão um amanhã e ainda sob o impacto do vídeo que mostra crianças brasileiras que viviam lá, comemorando, à beira mar, a saída do inferno da guerra, ainda que a paz pareça muito distante. Penso em todas as pessoas que, de uma hora pra outra, precisam juntar, em poucas malas, tudo aquilo que conquistaram e partir rumo a uma terra desconhecida, sem mapa, sem perspectivas de um futuro.

Faço essa pequena introdução um tanto quanto emotiva para elogiar um ponto muito específico do novo espetáculo de Mirna  Spritzer e Sergio Lulkin: a captura do zeitgeist, ou, em bom português, o espírito do tempo. Terra sem Mapa utiliza uma problemática extremamente contemporânea e complexa, como é a migração, para criar uma dramaturgia de encontros permeada pelas memórias coletivas de quem precisou partir. Deste modo, trata-se de uma dramaturgia não-linear, como a própria memória, que vai dançando entre uma história e outra, nem sempre explicitando as ligações entre elas.

Protagonizado por Luba e Vrum, duas figuras pitorescas que às vezes remetem às clássicas duplas da dramaturgia universal, como o Gordo e o Magro, o espetáculo apresenta duas linhas dramatúrgicas que nem sempre se encontram. Se por um lado há um fio de fábula na relação desses personagens, onde há inclusive uma certa brincadeira com a metateatralidade, por outro, há um tom mais sóbrio, quase documental, no uso dessas memórias. Há um desencontro entre essas duas propostas, tirando, por vezes, a força das cenas, especialmente aquelas que se pretendem mais profundas sobre o tema.

Todavia, trata-se de um trabalho extremamente bem acabado e que consegue, dentro do que Jerzy Grotowski conceituou como Teatro Pobre - um teatro que abre mão de mecanismos mais apurados e elaborados para focar no essencial da relação entre ator/espectador - criar uma intimidade com a plateia, que se torna cúmplice da ação. Neste sentido, as interpretações de Mirna Spritzer e Sergio Lulkin propõem um jogo muito interessante, utilizando de recursos simples e até pueris, para engajar a plateia. É o que ocorre, por exemplo, na cena inicial, quando Luba simula os três toques que abrem um espetáculo de teatro, batendo com um bastão no chão. Além disso, os atores investem em uma conexão intimista com a plateia, quebrando qualquer tipo de afastamento entre eles e o público, quando entram no teatro conversando informalmente  com as pessoas e estabelecendo desde já uma troca.

Em suma, considero Terra sem Mapa um espetáculo potente, especialmente do ponto de vista político. Apesar de não ser um tema essencialmente novo, afinal grandes marcos da história da humanidade se deram a partir de movimentos migratórios, o tema nunca esteve, para a geração atual, tão latente e inflamável. Por isso, é importante que o teatro se proponha a discutir esse tema, assumindo todas as suas complexidades. Terra sem Mapa em alguns momentos faz uso de canções e expressões em alemão, o que de certa forma serve pra trazer um recorte regional para o trabalho, dado o elevado número de imigrantes alemães que se estabeleceram no estado.

Por fim, a peça cria aproximações poéticas com um tema de difícil digestão. Trazendo histórias ora bem humoradas, ora dramáticas, o espetáculo humaniza um tema que, visto de longe, apenas pelo recorte dos telejornais, parece falar apenas sobre cidades destruídas, e não sobre os seres humanos que viviam nelas.