Santa Ceia profana no coração da cidade
Ao longo do primeiro semestre de 2013, tendo por clímax o mês de junho, centenas de milhares de brasileiros foram às ruas com uma pauta de reivindicações variada e desconexa. O tom geral era de inconformidade com aumentos especialmente do transporte urbano, mas o pano de fundo era a demanda coletiva de recuperação dos espaços públicos urbanos como palco de ação política. O número de pessoas envolvidas chamava a atenção, mas a face mais espetacular dessa mobilização não tinha face: eram os black blocs, rosto coberto por camisetas ou máscaras, mão armada para estraçalhar vidros e incendiar contêineres. Os eventos de junho acordaram a classe política (ou ao menos a sacudiram) por colocar em cena a violência, e o medo de esta estar fora de controle.
Cidade Proibida, premiada como o Prêmio Braskem 2015 de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular, surgiu como reação e reflexão do coletivo gaúcho Cia Rústica a essa convulsão, sendo criado em poucos meses e estreando em novembro de 2013. Além de um produto artístico, assume-se como ação política, e apresenta pontos coincidentes e discordantes das manifestações que a inspiraram. A Cia Rústica, liderada por Patricia Fagundes, sempre pregou a festa, a convivência e o prazer como forma “de negociar a morte e reinventar o mundo”, nas palavras de sua diretora. Em comum com os idos de junho, Cidade Proibida tem a urgência e a necessidade da ação política, mas, enquanto as manifestações se notabilizaram pelo coletivo e pela eventual violência, o espetáculo valoriza o indivíduo, num ambiente de tolerância, delicadeza e respeito.
A proposta é promover uma santa ceia profana no espaço das cidades. Escolhendo preferencialmente locais que a população evite por medo de violência, a Rústica monta uma passarela/mesa por onde desfilam suas atrações. A intervenção mantém o rigor técnico dos outros trabalhos do grupo, mas a tônica é a improvisação e a valorização dos talentos individuais dos 12 intérpretes. É como realizar uma pequena deriva pela cidade grande, trocando o lufa-lufa da urbe pelo tempo estendido da celebração convivencial, repentinamente atento à arquitetura e aos outros humanos que nos cercam.
Patricia não se prende a uma estrutura narrativa no modelo aristotélico, que exige princípio, meio e fim, clímax e que tais. Afinal, como funciona uma cidade? São múltiplos impulsos, movimentos desordenados, imprevisibilidades e desvios, enredos incertos e situações que nos atravessam, normalmente sem conclusão. A Rústica sugere que refundemos uma cidade proibida, aquela em que se pode prestar atenção e emprestar sensibilidade ao que nos cerca, onde podemos mostrar a cara e assumir nossas opções.
A montagem se inicia com os artistas circulando entre o público, “quebrando as quatro paredes”. Depois, segue uma cena basicamente improvisada, quando os artistas vagam erráticos, chocando-se, cumprimentando-se, flertando, odiando-se, sem palavras. A seguir, a passarela serve de palco à mulher indignada que joga ovos em quem fura o semáforo, a uma ex-miss perdida na multidão, a uma ciclista que se acidentou cinco vezes, à autointitulada melhor puta da cidade. E já é a vez de se colocar em cena toda a forma de amor – o elenco se desdobra em pares, trios, grupos, celebrando hétero, homo e pansexualismo.
Retoma-se a vivencialidade mais direta quando o elenco, ao som da irônica Walk on the Wild Side (que pode ser traduzido como Caminhe pelo Lado Perigoso ou Selvagem), oferece frutas ao público, mas instrui a todos que os restos sejam depositados em lixeiras. Patricia abre mão do que seria uma encenação eficiente, pelo menos no aspecto ritmo, quando encaminha o final do espetáculo com uma espécie de talk show anárquico, comandado por Heniz Limaverde travestido. Quando dá certo, consagração! E quando não dá? Talvez Patricia e seu grupo estejam sugerindo: “No pain, no gain. Sem riscos, você nunca subverterá a rotina imbecilizante de uma metrópole”.
Algumas observações pontuais: os textos às vezes soam supérfluos, ao fazerem a defesa necessária mas repetitiva de uma cidade humana, sem violência, sem especulação imobiliária, sem policiais violentos, sem criminalidade. O jogo cênico que transforma as camisetas que cobrem os rostos dos black blocs em capuzes de torturados políticos também parece um ponto fora da curva.
Finalmente, o que seria o maior questionamento: será que a Cidade Proibida que a Rústica põe em cena não é idealizada ao não colocar em cena explicitamente incidentes de violência? O wild side, o lado mau da cidade aparece sempre sendo narrado, perdendo em contundência. Cidade Proibida é o politicamente correto do bem – a defesa da viabilidade da utopia provisória de fazermos da urbe um lar coletivo.
Saí da Cidade Proibida e entrei na cidade onde vivo despido da indignação anárquica e destrutiva dos black blocs, feliz por ajudar a erguer um acampamento onde se imaginam e praticam possibilidades e se compartilham prazeres. Como se dizia anos atrás, a alegria é uma arma quente.
Próxima crítica a ser postada: Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea
CIDADE PROIBIDA
Direção, concepção e dramaturgia: Patrícia Fagundes
Intérpretes: Ander Belotto, Camila Falcão, Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz Limaverde, Karine Paz, Lisandro Bellotto, Kaya Rodrigues, Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Susi Weber e Mirna Spritzer
Iluminação: Bathista Freire/Lucca Simas
Cenografia: Rodrigo Shalako
Trilha sonora, produção musical e figurino: o grupo
Duração: 60 min
Fotos: Luciano Lanes/PMPA
Recomendação etária: 14 anos