TRAGO SORTE MENTIRA & MORTE
Pedro Bertoldi , Porto Alegre (RS), 10/04/2023
Novo espetáculo do Grupo Cerco traz para a cena o caráter festivo e de pesquisa no teatro
Crédito Adriana Marchiori

Trago sorte mentira e morte (e festividade) 

O calor infernal que costuma fazer em janeiro em Porto Alegre não foi capaz de espantar as centenas de pessoas que aguardavam na fila do Theatro São Pedro para assistirem ao espetáculo Trago, Sorte, Mentira e Morte, do Grupo Cerco. Em agosto, quando assisti ao espetáculo pela primeira vez, o frio também não havia espantado a plateia. Concluo, portanto, que há alguma coisa no trabalho do Grupo Cerco que faz com que, faça chuva ou faça sol, o público permaneça disposto a prestigiá-los.

Para começar, é preciso citar a dramaturgia de Celso Zanini, que me parece beber um pouco de Ariano Suassuna e sua inesquecível dupla de malandros João Grilo e Chicó, aqui revisitados em Valentim e Tom, interpretados por Bruno Fernandes e Philipe Philippsen respectivamente. É uma trama praticamente infalível, afinal, a malandragem como instrumento de sobrevivência está na gênese do brasileiro, para o bem e para o mal. O texto captura isso de forma espirituosa o que rende excelentes tiradas e risadas calorosas da plateia. Além disso, a dramaturgia é nonsense. Também pudera: com os casos de corrupção, que desde que o Brasil é Brasil ganham cada vez mais complexidade e um certo caráter espetacular e mirabolante, resta à arte explorar a imaginação e o surrealismo, o que acontece fartamente na peça.

Os aspectos visuais do espetáculo também merecem destaque. Eles ressaltam um ar vintage, quase artesanal, de um teatro à moda antiga. O charme das lamparinas na ribalta, os figurinos impecáveis concebidos por Valquíria Cardoso (especialmente o das ciganas), a cenografia simples e funcional de Rodrigo Shalako. Todos estes elementos convergem para uma satisfatória experiência teatral. É interessante ver quando um grupo contemporâneo consegue se adaptar aos novos tempos e tecnologias e ainda assim manter vivo o caráter artesanal do teatro.

O elenco atua em conjunto, sendo quase impossível que se destaque um em detrimento aos demais. No entanto, a composição de Anildo Boes para o político argentino e seu irresistível portunhol é de aplaudir de pé. Deslizando suavemente entre a sedução e a canalhice, o ator inscreve o personagem como um dos grandes destaques de um espetáculo já repleto de personagens interessantes. Por falar neles, os personagens, tipos extremamente identificáveis, representam um grande desafio: o de não cair na simples caricatura. As interpretações até flertam um pouco com isso, mas de uma maneira condizente com o tom nonsense de todo o trabalho.   Aliás, fica nítido o quanto a direção conhece cada um dos atores e atrizes e sabe exatamente como extrair o melhor de cada um.

E por falar em direção, nenhum desses elementos isolados seriam responsáveis pelo bom resultado do espetáculo sem o trabalho das três diretoras na costura deles. Simone Rasslan, na direção musical e Inês Marocco e Kalisy Cabeda, na direção cênica, conseguem orquestrar com maestria todos estes elementos de forma orgânica e potente. Nada parece truncado, nenhuma escolha parece aleatória. Tudo parece, e certamente foi, muito estudado.

Aliás, esta é uma característica do Grupo Cerco que mais uma vez se manifesta neste trabalho: o caráter de pesquisa impregnado em seus espetáculos. É interessante notar como cada novo trabalho parece avançar nas pesquisas anteriores em novos desdobramentos. Deste modo, a vivacidade, a energia e o caráter festivo que já se manifestaram em Arena Selvagem, estreado em 2018, atingem aqui um resultado mais amplo. Assim, o caráter festivo do espetáculo Trago Sorte Mentira e Morte é uma das características mais marcantes. Desde o início, é possível sentir a energia que emana do palco e dos atores. A música, as cores vibrantes e os movimentos intensos dos atores criam uma atmosfera de celebração e festa que é contagiante. É quase impossível não se deixar levar pelo ritmo e pela energia dos atores e da banda que conduz o espetáculo. O público se sente parte de um grande evento, de uma festa onde todos estão convidados a se divertir e aproveitar o momento.

Ressalto outra qualidade, essa mais do Cerco do que do espetáculo propriamente dito: depois de mais de década trabalhando juntos, os integrantes do grupo criaram um tipo de simbiose, uma aliança poderosa que ultrapassa a quarta parede e atinge em cheio os espectadores. São colegas de trabalho, mas antes disso são amigos. Jogam juntos como um time. Se um colega erra a fala, o outro contorna. Se um entra sem energia, o outro coloca um caco aqui, provocando o riso e jogando a energia lá no alto de novo. Eles celebram juntos, como uma família. E como em toda a boa família sempre cabe mais um, o Cerco nos convida para sentar à mesa do bar e beber mais uma!