Trago sorte mentira e morte (e festividade)
O calor infernal que costuma fazer em janeiro em Porto Alegre não foi capaz de espantar as centenas de pessoas que aguardavam na fila do Theatro São Pedro para assistirem ao espetáculo Trago, Sorte, Mentira e Morte, do Grupo Cerco. Em agosto, quando assisti ao espetáculo pela primeira vez, o frio também não havia espantado a plateia. Concluo, portanto, que há alguma coisa no trabalho do Grupo Cerco que faz com que, faça chuva ou faça sol, o público permaneça disposto a prestigiá-los.
Para começar, é preciso citar a dramaturgia de Celso Zanini, que me parece beber um pouco de Ariano Suassuna e sua inesquecível dupla de malandros João Grilo e Chicó, aqui revisitados em Valentim e Tom, interpretados por Bruno Fernandes e Philipe Philippsen respectivamente. É uma trama praticamente infalível, afinal, a malandragem como instrumento de sobrevivência está na gênese do brasileiro, para o bem e para o mal. O texto captura isso de forma espirituosa o que rende excelentes tiradas e risadas calorosas da plateia. Além disso, a dramaturgia é nonsense. Também pudera: com os casos de corrupção, que desde que o Brasil é Brasil ganham cada vez mais complexidade e um certo caráter espetacular e mirabolante, resta à arte explorar a imaginação e o surrealismo, o que acontece fartamente na peça.
Os aspectos visuais do espetáculo também merecem destaque. Eles ressaltam um ar vintage, quase artesanal, de um teatro à moda antiga. O charme das lamparinas na ribalta, os figurinos impecáveis concebidos por Valquíria Cardoso (especialmente o das ciganas), a cenografia simples e funcional de Rodrigo Shalako. Todos estes elementos convergem para uma satisfatória experiência teatral. É interessante ver quando um grupo contemporâneo consegue se adaptar aos novos tempos e tecnologias e ainda assim manter vivo o caráter artesanal do teatro.
O elenco atua em conjunto, sendo quase impossível que se destaque um em detrimento aos demais. No entanto, a composição de Anildo Boes para o político argentino e seu irresistível portunhol é de aplaudir de pé. Deslizando suavemente entre a sedução e a canalhice, o ator inscreve o personagem como um dos grandes destaques de um espetáculo já repleto de personagens interessantes. Por falar neles, os personagens, tipos extremamente identificáveis, representam um grande desafio: o de não cair na simples caricatura. As interpretações até flertam um pouco com isso, mas de uma maneira condizente com o tom nonsense de todo o trabalho. Aliás, fica nítido o quanto a direção conhece cada um dos atores e atrizes e sabe exatamente como extrair o melhor de cada um.
E por falar em direção, nenhum desses elementos isolados seriam responsáveis pelo bom resultado do espetáculo sem o trabalho das três diretoras na costura deles. Simone Rasslan, na direção musical e Inês Marocco e Kalisy Cabeda, na direção cênica, conseguem orquestrar com maestria todos estes elementos de forma orgânica e potente. Nada parece truncado, nenhuma escolha parece aleatória. Tudo parece, e certamente foi, muito estudado.
Aliás, esta é uma característica do Grupo Cerco que mais uma vez se manifesta neste trabalho: o caráter de pesquisa impregnado em seus espetáculos. É interessante notar como cada novo trabalho parece avançar nas pesquisas anteriores em novos desdobramentos. Deste modo, a vivacidade, a energia e o caráter festivo que já se manifestaram em Arena Selvagem, estreado em 2018, atingem aqui um resultado mais amplo. Assim, o caráter festivo do espetáculo Trago Sorte Mentira e Morte é uma das características mais marcantes. Desde o início, é possível sentir a energia que emana do palco e dos atores. A música, as cores vibrantes e os movimentos intensos dos atores criam uma atmosfera de celebração e festa que é contagiante. É quase impossível não se deixar levar pelo ritmo e pela energia dos atores e da banda que conduz o espetáculo. O público se sente parte de um grande evento, de uma festa onde todos estão convidados a se divertir e aproveitar o momento.
Ressalto outra qualidade, essa mais do Cerco do que do espetáculo propriamente dito: depois de mais de década trabalhando juntos, os integrantes do grupo criaram um tipo de simbiose, uma aliança poderosa que ultrapassa a quarta parede e atinge em cheio os espectadores. São colegas de trabalho, mas antes disso são amigos. Jogam juntos como um time. Se um colega erra a fala, o outro contorna. Se um entra sem energia, o outro coloca um caco aqui, provocando o riso e jogando a energia lá no alto de novo. Eles celebram juntos, como uma família. E como em toda a boa família sempre cabe mais um, o Cerco nos convida para sentar à mesa do bar e beber mais uma!
Criação coletiva: Grupo Cerco
Direção Cênica: Inês Marocco e Kalisy Cabeda
Direção Musical e Preparação Musical: Simone Rasslan
Dramaturgia: Celso Zanini
Elenco: Anildo Böes, Bruno Fernandes, Camila Falcão, Elisa Heidrich, Manoela Wunderlich, Martina Fröhlich, Philipe
Philippsen
Banda: Gabriela Lery, Rhuan de Moura e R. Fernandez
Composição Original das Canções: Celso Zanini e Sanatório Rock Blues
Arranjos: Frigo Mansan, Gabriela Lery, R. Fernandez e Simone Rasslan
Cena Sonora Original: Grupo Cerco e Banda
Desenho de Luz: Ricardo Vivian
Operação de Luz: Bruna Casali
Desenho de Som: Rodrigo Rheinheimer
Cenografia: Rodrigo Shalako
Contrarregragem: Dani Nardin
Concepção de Figurinos: Valquíria Cardoso
Confecção de Figurinos e Adereços: Valquíria Cardoso, Alex Limberger e Mari Falcão
Maquiagem: Anildo Böes, Camila Falcão, Manoela Wunderlich e Martina Fröhlich
Preparação Corporal: Anildo Böes e Manoela Wunderlich
Preparação Vocal: Philipe Philippsen e Simone Rasslan
Programação Visual: Marina Kerber
Gestão de Redes Sociais: Elisa Heidrich
Fotos para Divulgação: Adriana Marchiori
Produção e gestão: Daniela Lopes / Cardápio Cultural
Apoio: Grupo Press, Pastel com Borda e Expresso 25
Realização: Grupo Cerco