FESTIVAL DE TEATRO DE GRAVATAÍ
Pedro Bertoldi , Gravataí (RS), 30/11/2022
O Arquipélago parte da arqueologia pessoal de Pablito Kucarz que utiliza as suas cicatrizes para tecer um mapa das violências sofridas por ele ao longo da vida
Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

Sobre dançar com as cicatrizes

Eu não quero falar sobre mim.

É assim que o ator  Pablito Kucarz, da Súbita Companhia de Teatro, de Curitiba (PR), inicia a nossa viagem pelo seu denso arquipélago.  Numa dramaturgia que começa pelos fios de uma meia apertada que oprime as perninhas frágeis de um bebê e termina num grande delta que deságua no mar coletivo de cicatrizes mais profundas, o ator anfitrião nos conduz por uma delicada e potente viagem da qual não podemos sair ilesos.

Uso o termo anfitrião para me referir ao ator porque de fato ele se apropriou do Teatro do SESC Gravataí de tal forma, circulando tão livremente entre o público presente e com uma simpatia tão genuína, que é como se todos nós estivéssemos ali apenas por ele. Ganhar a simpatia do público, especialmente num solo denso como este, não é uma tarefa fácil, mas Pablito consegue transmitir tão bem sua essência que não são necessários cinco minutos para que estejamos completamente rendidos.

Um dos cinco solos integrantes do projeto HABITAT - estudos do corpo como casa, O Arquipélago parte da arqueologia pessoal do ator que utiliza as suas cicatrizes para tecer um mapa das violências sofridas por ele ao longo da vida. Lembram da primeira frase do espetáculo?

Pois é. O ator abraça o contraditório como se entendesse que é impossível falar deste corpo-casa com todas as rachaduras e falhas estruturais que ele pode ter, sem falar minimamente de si mesmo. Este corpo-casa que carrega em si todas as violências que o corpo de um homem homossexual é submetido em um país homofóbico como o nosso, também é o que é pelas cicatrizes que ficaram. E é nesse ponto que habita uma das maiores qualidades deste trabalho: a universalidade do tema. Cicatrizes são individuais. Cada um sabe onde estão as suas, que história elas carregam e que dores elas ainda provocam. Fato é que todos nós temos as nossas e quando ouvimos alguém falar sobre as suas tão abertamente, sentimo-nos convidados a pensarmos nelas e quando assim fazemos, tornamo-nos um só corpo-casa. Comunhão! Ah, como é mágico isso que o bom teatro pode fazer!

Com destreza e inteligência cênica, Pablito sabe conduzir a comunhão como poucos. Ora elege alguém da plateia, chamando-o pelo nome, ora oferece uma água para quem quiser. Ações simples, é verdade, mas carregadas de tantos significados especialmente dentro deste universo de distanciamentos que o ator constrói em seu solo. É como se ele nos lembrasse de que ali somos um, mesmo diante de tantas diferenças.

Pablito também parece entender que suas cicatrizes não são só suas. Ele compreende que carrega em si as cicatrizes da jovem mulher explorada no trabalho, da mulher, SIM: MULHER, que teve seu coração arrancado, do rapaz agredido com uma lâmpada na cara e tantas e tantas vítimas desta violência brutal que está aí nas ruas. Mas não só nelas. O Arquipélago também entra na violência dos lares, verdadeiros oceanos de silêncio e mágoas que pontuam a incalculável distância entre os quartos de dois irmãos.

Destaco também a direção de Maíra Lour: delicada, sutil, mas que abraça o ator. Especialmente neste tipo de trabalho, que parte de questões muito íntimas e pessoais dos atores, é necessário um cuidado extra, inclusive do ponto de vista ético, na condução do trabalho. Maíra parece ter ido no ponto, provocando o ator a revelar mais de suas profundidades, mas sem  expô-lo desnecessariamente. Ainda do ponto de vista da direção, destaco as escolhas estéticas do espetáculo: o vermelho vivo das meias num contraste perfeito com o verde piscina quase hospitalar do cenário, a iluminação certeira do competentíssimo Beto Bruel, sem firulas e na medida certa para elevar o ator.

Enfim, todos os elementos deste trabalho funcionam como um rio que converge para o mesmo ponto, numa catarse perfeita: a belíssima cena final onde o ator cumpre a promessa de não falar de si mesmo, ou melhor, não só de si mesmo. Pablito fala de todos nós. Fala das nossas cicatrizes enquanto povo. Fala das cicatrizes de nossos ancestrais. Fala daqueles que não tiveram voz. Ou daqueles que tiveram suas vozes silenciadas. Pablito dança. Dança em cima de suas cicatrizes. Desvia das pedras. Cura. Pablito se cura e nos cura de nossas cicatrizes.

Dança, Pablito. Agora é contigo e para ti: segue dançando. Segue escrevendo sobre essas cicatrizes que são tuas, mas são nossas. Segue nos chamando pelo nome, generosamente nos convidando a dançar também. Um recado, um poderoso recado de que a arte há de vencer a violência e ainda há de sanar as nossas dores.

Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

 

A equipe do AGORA Crítica Teatral foi convidada pelo Festival de Teatro de Gravataí. A produção crítica faz parte do eixo Conexões Reflexivas.