FESTIVAL DE TEATRO DE GRAVATAÍ
Pedro Bertoldi , Gravataí (RS), 29/11/2022
CaÊ, da Karma Coletivo de Artes Cênicas, de Itajaí (SC), escapa da obviedade em vários sentidos
Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

CaÊ rompe horizontes de crianças e adultos

Sexta- feira à tarde. Plateia do gigantesco Teatro do SESC Gravataí repleta de crianças de todas as idades e tamanhos. A equipe de produção do 6º FETEG cumprimenta a plateia perguntando quantas daquelas pessoas estavam em um teatro pela primeira vez. Um mar de mãozinhas erguidas brota das confortáveis cadeiras do teatro e imediatamente me transportam para a primeira plateia em que eu estive.

Nas paredes da memória, se projetaram as imagens daquele menino de 6 ou 7 anos encantado com as cenas fascinantes de uma peça que se passava em um navio em alto mar. Lembrei que ao fim do espetáculo, cumprimentei sorridente os atores dizendo que quando eu crescesse, queria ser como eles. Também queria poder viajar em alto mar sem sair da terra firme.

De repente, a luz da plateia se apaga, arrastando para longe as minhas lembranças e me devolvendo ao presente. CaÊ e sua estranha bicicleta entram em cena, mas não sozinhos. Existem tantos significados importantes por trás desta presença no palco, que a solidão que poderia se esperar de um solo, logo se dissipa.

O espetáculo da Karma Coletivo de Artes Cênicas, de Itajaí (SC), com dramaturgia e direção assinadas por Max Reinert e interpretado pelo ator e bailarino Mauro Filho, revisitam a obra do artista visual Mauro Caelum, não por acaso, pai do ator. Caelum, falecido em 2016, dedicou mais de 30 anos de sua vida à pesquisa e produção artística em obras que vão da poesia, passando por pinturas, esculturas e instalações. Com sensibilidade e inteligência, o espetáculo consegue fugir da justa homenagem ao artista ao propor novas leituras às obras dele, atingindo a sensibilidade dos espectadores de todos os tamanhos, que conhecem ou não a obra do homenageado.

Indo por este sentido, o espetáculo cria uma dramaturgia destinada à infância que não trata seu público alvo como incapaz de compreender as sutilezas e nuances. Pelo contrário, a  dramaturgia do espetáculo parece jogar o tempo todo para o público a responsabilidade de preencher as lacunas com suas próprias subjetividades. Para ilustrar este pensamento, recorro àquela primeira peça que assisti.

Se me perguntassem qual era a história e quais os personagens, eu não precisaria de um minuto para responder que retratava as trapalhadas de um grupo de marinheiros em alto mar. E se fizermos as mesmas perguntas às crianças que assistiram CaÊ? O que elas responderiam? Teríamos uma única resposta?

Arrisco afirmar que não. Indo além, acho que o espetáculo nos traz mais perguntas do que respostas. Afinal, quem é CaÊ? Para onde está indo com sua bicicleta? O que está procurando? Quantos universos cabem na sua grande mochila? Tantos quantos a imaginação fervilhante das crianças permitirem. CaÊ talvez seja isso: um canto de amor à criatividade infantil e um doce convite para que os adultos possam também se desprender da necessidade de respostas únicas e de histórias contadas tim por tim.

CaÊ escapa da obviedade em vários sentidos. Da dramaturgia aberta às múltiplas leituras, como já mencionado, até a interpretação de Mauro Filho, carregada de expressividade e de movimentos que provocam um certo estranhamento, um choque entre nossas expectativas e os caminhos para onde o corpo do ator e bailarino é capaz de nos levar. E são muitos caminhos. CaÊ é um céu infinito. Pode ser uma viagem em bicicleta. Ou uma mochila cheia de ideias. CaÊ pode ser um menino grande. Pode ser Mauro. Pode ser eu. CaÊ talvez esteja revisitando o pai. Ou esteja visitando a si mesmo. Na mochila de CaÊ pode estar as memórias de Mauro. Ou talvez as minhas e das outras crianças. CaÊ pode transpor horizontes estéticos, mas não só eles.

CaÊ rompe também com o preconceito contra o teatro para a infância e juventude, erroneamente encarado, inclusive por representantes da própria classe artística, como gênero menor, bobo até. Um olhar que na verdade tem raízes no preconceito com a própria infância, um assunto que renderia muitos outros textos. Por agora, é importante ressaltar o quanto CaÊ consegue, tanto pela forma quanto pelo conteúdo, desmanchar completamente esta visão. Afinal, como é possível achar este teatro requer pouco estudo ou preparo? Como achar que este público não compreende nuances e camadas? Como?

O espetáculo acaba, pelo menos no palco, e CaÊ se vai com sua bicicleta. Eu queria poder navegar sem sair da terra firme. As crianças que assistiram ao espetáculo certamente vão querer andar de bicicleta coletando o quê mesmo? O que elas quiserem imaginar.

Foto de Andréa Seligman / FETEG Divulgação

 

A equipe do AGORA Crítica Teatral foi convidada pelo Festival de Teatro de Gravataí. A produção crítica faz parte do eixo Conexões Reflexivas.