BUKOWSKI - HISTÓRIAS DA VIDA SUBTERRÂNEA
Ruy Filho (SP), em Porto Alegre, 09/09/2015
Roberto Oliveira se encontra com e em Bukowski
Montagem do grupo gaúcho Depósito de Teatro foi atração do Porto Alegre em Cena

A dimensão ébria da melancolia para além da palavras

Um cara complicado. Muitas pessoas são, é verdade, e como de perto somos sempre estranhos, imagine as difíceis, as intraduzíveis. Bukowski revelou-se um dos maiores poetas de seu tempo, reconhecido por público, artistas e academia. O que tornara sua vida tão deslocada do sucesso, a ponto de trabalhar para o correio enquanto escrevia, eram principalmente bebidas e mulheres. Mas, não fossem eles, álcool e sexo, talvez não escrevesse poesias. Não fosse a escrita, talvez não sobrevivesse à monotonia da vida.

Mais do que um estilo poético, Bukowski escancarou a sociedade em sua mais profunda melancolia, inutilidade e perversão. Também por isso, cada mais sua visão de mundo influencia criadores para além da literatura, alcançando no teatro a urgência dos discursos. O dilema é construir o universo caótico da vida e de seu pensamento, o que, por si só, faz-se paradoxal, já que ordem não é bem uma boa palavra para ele. É o que se propõe enfrentar o diretor e dramaturgo de Bukowski – histórias da vida subterrânea, Roberto Oliveira, ocupando-se também de interpretar o poeta.

O público se acomoda e a primeira cena se revelará a baliza entre as conquistas e dificuldades. Como se estivéssemos em um bar decadente, cercadas por centenas de garrafas vazias de toda sorte de bebida alcoólica, atrizes ocupam as mesas. As mulheres viciadas e embriagadas são as principais companheiras de Bukowski. Calcinhas à mostra, corpos à flor-da-pele e destituídas de pudores e morais sociais, são misturas de abandono, nojo, desejo e prazer. O poeta ao fundo em sua máquina de escrever. Eles convivem, mas não necessariamente estão juntos. Ótima representação do universo bukowskiano.

A solidão triste de todos ali indica, porém, outro lado nessa história: o excesso de vida que o contemporâneo exige. Viver ao limite, sem interrupções e escapes. Viver o extremo sem nenhuma tentativa de lhe trazer sentido ou explicações.

A cena inicial é longa, muda, composta apenas pelos sons das respirações, das regurgitações, das reclamações, dos tilintares das garrafas e ruídos dos saltos altos. Nada é verdadeiramente dito. E é essa potência fundamental para encontrarmos Bukowski, a ambiência e não as palavras. A capacidade de se utilizar de tudo aquilo que fora construído pelo poeta na máquina de escrever, apenas desenhando a existência como concretude indescritível.

Todavia, o problema está exatamente na consistência cênica e coerência poética dessa dança silenciosa ébria destrutiva inicial. Ao ser rompida, volta-se para o teatro tradicional, em que o texto se vale como narrativa e condução. Ao contar a história do poeta, seus pormenores, para nos conduzir aos relacionamentos com suas amantes, amigos e familiares, o espetáculo perde a profundidade da experiência e limita o espectador à passividade.

Assim, algumas cenas frustram por serem apenas instrumentos para dar conta das informações e momentos. Poderia sim chegar a ser suficiente. Muitos são os espetáculos que se estruturam na apresentação do personagem retratado. Não fosse a brilhante cena inicial. Nela, algo acontece que a torna única e profundamente radical, e o teatro supera o próprio teatro, e a atmosfera bukowskiana criada por Roberto Oliveira é cruelmente eficiente.

Talvez seja ainda preciso ao trabalho se desprender da dramaturgia, de seu aspecto clássico, e compreendê-la naquilo que lhe serve melhor, assim como Bukowski se libertou de todo mínimo traço romântico piegas da poesia que o antecedeu.

São os atores quem sustentam a peça, ao final, e não o texto. Imagens incríveis, corpos disponíveis, interpretações forte em muitos momentos. Faltou deixar as palavras serem apenas os arranjos sinceros de Bukowski. Torço para rever o espetáculo esvaziado de tantas palavras, enquanto o espaço se ocupar com o cheiro insuportável de álcool, cigarro, suores. E, assim, descobrir em mim um Bukowski escondido pronto para falar.