A ritualística da violência
Sortilégio, texto teatral de Abdias Nascimento (1914-2011) publicado recentemente pela Editora Perspectiva, tem como personagem central um advogado negro que, mesmo tendo alcançado o feito notável de graduar-se em direito na década de 1950, colocando-se ao lado de “brancos-doutores", assumindo uma posição de poder em uma sociedade com raras possibilidades de ascensão, não consegue romper os limites que a discriminação e o preconceito racial impõem a seu corpo e a sua existência como homem livre.
Publicado pela primeira vez em 1959 e revisto pelo autor em 1978, Sortilégio é uma obra fundamental na história da dramaturgia brasileira. Não apenas porque evoca de modo contundente os conflitos raciais que há séculos permeiam a história do Brasil, mas por influenciar gerações de artistas negros que, a partir da repercussão do texto – o qual teve sua estreia em 1957 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com direção de Léo Jusi –, tiveram em Abdias Nascimento uma referência basilar como um dos grandes autores da dramaturgia nacional do último século.
Emanuel, o personagem central do texto, é um advogado negro que foge da polícia pelo assassinato da esposa, Margarida, mulher branca que abortou o filho dos dois por temor de que a criança nascesse preta. Ifigênia, a antiga namorada de Emanuel, abandonada por ele pelo casamento de conveniência com Margarida, vê seus sonhos de se tornar atriz desmantelados por sua condição social e cor da pele, e se torna prostituta. A trama ocorre sob uma atmosfera onírica e sob o aparato simbólico que Abdias Nascimento constrói e evoca a dor e a opressão de todo um povo a partir de suas tradições e religião.
A onipresença das três Filhas de Santo e um Babalorixá (ou Ialorixá, dependendo do elenco) constituem uma outra dimensão, uma realidade sub-reptícia dentro da narrativa estabelecida por Abdias Nascimento. Essas personagens não apenas comentam a ação e descrevem as personagens, mas contextualizam o afastamento e reaproximação que Emanuel percorre de suas origens. As similaridades das Filhas de Santo, sua presença agonística e os presságios que traçam parecem estar correlacionadas simbolicamente às parcas gregas, ou mesmo às bruxas de Macbeth. Elas protagonizam a dimensão espiritual, as oscilações entre as influências místicas e religiosas na vida, no comportamento e no desenvolvimento emocional da personagem central.
A alusão ao sacrifício ritual de Emanuel, tal como uma Ifigênia às avessas, no sentido de que parece impor-se ao autossacrifício, amplia as camadas de interpretação simbólica do texto. A morte de Emanuel não é apenas uma fuga da polícia, da culpa e da alcunha de feminicida, mas se desdobra como a concretização de uma obrigação religiosa – o arrancar dos olhos de um Édipo negro, a consumação de um equilíbrio trágico, uma ação arquetípica que parece se aproximar ao mesmo tempo da vingança de sangue das Erínias, que punem os crimes parentais, e da justiça benevolente das Eumênides, que consagram o perdão através da justiça.
A concepção ritualística do texto, com a profusão de objetos e figuras da Macumba e do Candomblé, não se configura apenas como reprodução ou alusão etnográfica dos ritos, tradições e religião afro-brasileiras, mas como elementos constituintes da construção dramatúrgica do autor. Os pontos de orixá compostos originalmente por Abgail Moura para primeira encenação do texto, em 1957, com letras rescritas por Abdias Nascimento em 1979 e musicadas por Nei Lopes, cujas partituras integram a presente edição, desenham as reviravoltas do texto a partir da influência de figuras místicas ligadas às transformações das personagens, com a performance de coro de tamboristas, cantores e filhas e filhos de santo. A metamorfose de Ifigênia, de mulher abandonada e prostituída em sacerdotisa, com trajes rituais de Ogum e portadora da espada que tira a vida de Emanuel, sublinha essas transformações e culmina o texto rumo à apoteose final.
Os textos complementares desta edição da Perspectiva – ricamente ilustrada com imagens da encenação original, de 1957, com direção de Léo Jusi e protagonizada pelo autor; e da encenação de 2014, com direção de Ângelo Flávio Zuhalê – refletem e sublinham a potência poética e social de Sortilégio. A apresentação e o prefácio de Elisa Larkin Nascimento, tradutora de diversos livros do autor para o inglês e, juntamente com ele, co-fundadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), traça uma sucinta trajetória biográfica e contextualiza os processos de escrita, reescrita e montagens da peça.
O livro contém entrevistas com Léa Garcia, atriz que interpretou Ifigênia na primeira montagem do texto, em 1957; e Ângelo Flávio Zuhalê, diretor da encenação de 2014, no Teatro Vila Velha, em Salvador/BA. O ensaio do pesquisador e diretor teatral Jessé de Oliveira, Sortilégio para o devir do teatro negro, que funciona como posfácio, reflete sobre a influência do texto de Abdias Nascimento em gerações de artistas negros e seu impacto no imaginário cultural e político do país. Para tanto, Jessé nomeia mais de 60 artistas negros em atuação no Brasil que de alguma forma foram influenciados pelo texto ou pelas encenações de Sortilégio. Nomear esses artistas, citá-los de maneira explícita e com sínteses biográficas, é um procedimento em absoluta consonância com as lutas e o ativismo de Abdias Nascimento, tornando visível e valorizando uma produção artística muitas vezes deixada em segundo plano nos estudos e pesquisas sobre o teatro brasileiro.
Sortilégio, de Abdias Nascimento.
Editora Perspectiva, 2022.
160 páginas.
R$ 44,90