Por um novo teatro político
“Qual é a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim.”
Gilles Deleuze, O ato de criação
Em 2015, Aquela Cia de Teatro, sediada no Rio de Janeiro, completou dez anos de existência, fato por si só notável em uma cidade carente de políticas públicas para a manutenção de grupos teatrais movidos pelo desejo de realizar uma pesquisa de longo prazo e desenvolver uma linguagem própria. Para celebrar esse feito, o diretor Marco André Nunes, o dramaturgo Pedro Kosovski e o diretor musical Felipe Storino, fundadores dAquela Cia, apresentaram simultaneamente, no Espaço SESC, dois trabalhos inéditos: Caranguejo Overdrive e Laio e Crísipo. Tamanho foi o sucesso de público e crítica da “Ocupação Aquela Cia 10 anos”, com casa sempre lotada e indicações para os prêmios mais importantes da cidade, que se torna imperativo refletir sobre as razões de uma recepção tão calorosa. Dadas a pequena dimensão deste texto e a singularidade absoluta das duas peças apresentadas, me concentrarei apenas em Caranguejo Overdrive, na qual a poética dAquela Cia alcançou o seu ponto culminante nesses dez anos.
“Não se pode dizer que sou eu que falo, as palavras valem muito pouco diante da força do apetite, porque apetite e palavras são coisas que se resolvem na boca, as palavras existem em função da defesa, então falo em nome de um ataque e é isso que vale por aqui, falo porque tenho fome, de lama misturada com urina, excrementos e toda espécie de resíduos que a maré cheia me traz e assim passam-se os dias onde tento me engordar com os restos que a cidade descarta...”.
As palavras iniciais de Caranguejo Overdrive, ditas por “um caranguejo que um dia foi um homem chamado Cosme”, sintetizam os princípios fundamentais que orientaram a construção do trabalho. A partir de uma deglutição heterodoxa de Josué de Castro, Glauber Rocha e Chico Science – o geógrafo que provou que a fome não é fruto de nenhum desastre natural, mas de uma organização social iníqua; o cineasta que fez da fome não o tema, mas o motor mesmo de sua estética; e o músico que reatualizou a imagem baudelairiana do “poeta trapeiro”, a antropofagia oswaldiana e o tropicalismo – emerge a figura contemporânea do “homem-caranguejo”.
No plano do enredo da peça, ele se chama Cosme, um catador de caranguejos nascido no Mangal de São Diogo, atual Cidade Nova, que, obrigado a ir para uma guerra que não era sua, a Guerra do Paraguai (1864-1870), testemunha todos os horrores de um dos episódios mais sangrentos da história latino-americana e os relata para nós, ensinando-nos um pedaço largamente desconhecido de nossa própria história. Ao voltar para casa, trazendo no corpo as marcas de todos os crimes que testemunhou e de todas as “explosões brancas” que quase o aniquilaram, Cosme reencontra o seu mangue aterrado e o seu habitat destruído. Desorientado e quase mudo, ele conhece na Cidade Nova uma prostituta paraguaia, que ironicamente se dispõe a ser sua guia e lhe dá uma aula fabulosa sobre a história do Brasil, desde o presente do personagem até o presente do espectador, sobrepondo as camadas temporais e salientando como, desde os primórdios, o “progresso” se alimenta da barbárie – e vice-versa. Nessa cena, a atriz Carolina Virgüez nos brinda com um improviso memorável, tanto pela rapidez virtuosística de sua fala quanto pelo teor de seu discurso. Após esse breve encontro, Cosme, já no limite de suas forças, é novamente forçado, desta vez em troca de um prato de comida, a se converter em braço escravo das obras de “modernização” da cidade então empreendidas pelo Barão de Mauá. Ao evocar esse episódio de um passado aparentemente longínquo, o texto do espetáculo constrói um dispositivo sofisticado para denunciar o atual processo de gentrificação pelo qual passa a cidade do Rio de Janeiro, sob o pretexto de sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Que obscuros desígnios são encobertos por tantas “mudanças”? Finalmente, exaurido pelo trabalho inútil de cavar e tapar buracos, levantar e dinamitar elevados, “o mesmo caranguejo que um dia foi Cosme” nos conta que, a despeito de sua extraordinária resistência, um dia até mesmo ele foi “capaz de morrer”, tendo passado de caçador a caça – ou de caça a caçador – e voltando ao seu mangue de origem para ser pasto dos futuros homens-caranguejos.
O que esse resumo do enredo da peça deixa claro é, sobretudo, como os resumos são enganosos. E como os enredos (o velho mýthos aristotélico) há muito deixaram de ser a essência do fenômeno teatral. Ao operar essa violenta linearização da história de Cosme, ao submeter todos os demais elementos cênicos ao império da cronologia e do sentido, corre-se o risco de ler Caranguejo Overdrive como um trabalho apoiado em uma compreensão mítica do tempo como eterno retorno do mesmo. É como se o espetáculo pudesse estar dizendo: “no século XIX, o Brasil foi assim, o Rio foi assim, a fome foi assim. Foi assim e ainda é. Foi assim, ainda é, e não há nada que possamos fazer. Quando muito, podemos vir ao teatro reclamar, denunciar, nos indignar, bater panela. E, por breves momentos, sentir pena dos oprimidos e raiva dos corruptos, para depois podermos todos dormir em paz tendo pago a nossa libra de sofrimento”.
Não. Nada mais distante da proposta desse novíssimo teatro político. Os integrantes dAquela Cia, na esteira do jovem Lukács, entendem muito bem que “o que há de verdadeiramente social na arte é sua forma”. Uma forma que, imitando os revolucionários franceses de 1789, atira nos relógios, explode a linearidade do tempo, interrompe o fluxo do sempre igual, e deixa o novo, sempre imprevisto e impensado, aparecer. O fato de que uma história tenha sido de um jeito não significa que não possa vir a ser de outros. Se, na peça, Cosme ganha corpo e voz – ou melhor, corpos e vozes, já que o personagem atravessa os cinco atores em cena –, isso já instaura uma diferença com relação ao que (empiricamente) foi. Sim, a história de Cosme é a dos vencidos, a dos anônimos, a dos sem voz. Mas, em Caranguejo Overdrive, ao contrário do que se deu e se dá na História Oficial, esse homem-caranguejo assume a palavra.
Mais do que “o quê” ele diz, importa “como” ele diz o que diz. Neste ponto, a direção de Marco André Nunes é de uma inventividade que precisa ser celebrada. Além de enfatizar a sobreposição de camadas temporais e a mistura de formas de narração já presentes no texto de Pedro Kosovski, em que convivem o panfleto político, os monólogos líricos, os diálogos sincopados, a mitologia dos guerreiros do mangue, os discursos professorais sobre a biologia dos caranguejos ou a história do Brasil, a direção opera pela justaposição de planos espaciais distintos que configuram uma verdadeira instalação, não raro obrigando os espectadores a decidirem o que querem ver. Assim, muito além das palavras, a cena se apoia na plástica de corpos em convulsão, em distintos registros de elocução, na mistura de uma caixa de areia, um mapa do Brasil, um aquário repleto de lama, um quadro branco e uma gaiola com caranguejos vivos que não por acaso são libertados ao longo do espetáculo e trazidos à ação. Atravessando, potencializando e interpretando todos os acontecimentos, a trilha sonora original de Felipe Storino (guitarra) e Mauricio Chiari (bateria), acompanhados em cena por Samuel Vieira (baixo), incorpora e faz diversas citações ao pesado e eletrizante Mangue Beat de Chico Science, dando ao conjunto do espetáculo os ares de uma obra de arte total.
Nessa disposição polifônica de palavra, música e imagem, uma coisa fica clara: a complexidade de nossa história não permite o conforto de um ponto de vista estável que fosse capaz de abarcar tudo com uma só mirada ou um só discurso. A meu ver, o novo teatro político, que reconhece a impossibilidade de diagnósticos redutores e de soluções simplistas para os problemas do presente, encontra em Caranguejo Overdrive um exemplar de rara suculência.
Por isso, eu espero que, como o ator que herculeamente se mantém em cena por 20 minutos coberto de lama na quase insustentável posição de homem-caranguejo, emblema do projeto como um todo, Aquela Cia seja capaz de resistir por muitos e muitos anos ainda em meio à lama e ao caos da política cultural carioca.
CARANGUEJO OVERDRIVE
Direção: Marco André Nunes
Direção Musical: Felipe Storino
Elenco: com Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques, Matheus Macena
Músicos em cena: Felipe Storino, Mauricio Chiari e Samuel Vieira
Ideia original: Mauricio Chiari
Texto: Pedro Kosovski
Instalação cênica: Marco André Nunes
Direção de Produção: Verônica Prates
Duração: 50 minutos