AS TREVAS RIDÍCULAS
Renato Mendonça (RS), de Porto Alegre, 05/07/2017
Dificuldade de reconhecer o outro é o eixo da montagem que Alexandre Dill propõe para texto de Wolfram Lotz, dentro do projeto TRANSIT
Rigor técnico e distanciamento emocional são marcas de "As Trevas Ridículas". Na foto, Vicente Vargas (à frente) e Frederico Vittola

A treva que em nós reside

No final de maio, dentro da programação do 12º Festival Palco Giratório, Porto Alegre teve o privilégio de assistir à estreia em palcos brasileiros do texto As Trevas Risíveis, de Wolfram Lotz. A descoberta de Lotz, um dos expoentes da nova dramaturgia alemã, se deu em dose dupla: por iniciativa do Goethe-Institut Porto Alegre, o projeto Transit viabilizou que o texto fosse montado independentemente por dois diretores gaúchos, permitindo à obra de Lotz transitar por gerações diferentes, estéticas distintas, modos de produção diversos.

Os criadores escolhidos foram Camilo de Lélis (que batizou sua montagem de Nas Sombras do Coração) e Alexandre Dill (que chamou sua encenação de As Trevas Ridículas). As reflexões a seguir tratam da leitura que Dill, líder do Grupojogo, fez de As Trevas Risíveis, o texto mais encenado de Lotz que põe às claras a incapacidade de cada um e de todos nós de reconhecermos o outro (leia crítica de Michele Rolim sobre montagem de Camilo em http://bit.ly/2tFf0ue).

Antes de passar à encenação proposta por Dill (que encerra temporada no próximo final de semana), cabe discutir o texto de Lotz, afinal o ponto de partida desse trânsito todo. As Trevas Risíveis foi escrito originalmente para ser veiculado em rádio. O alemão de 36 anos urdiu uma narrativa híbrida, dividida em 26 cenas, algumas delas resumidas a poucas linhas, lado a lado com um prólogo de 30 minutos. Em tom de blague, Lotz coloca a epígrafe “Baseado no Coração do Apocalipse, de Francis Ford Conrad”, insinuando que elementos da novela Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, e do longa-metragem Apocalipse Now (1979), de Francis Ford Coppola, estarão presentes e entrelaçados a sua ficção.

De fato, as três obras compartilham uma estrutura básica: um homem recebe a missão de viajar rio acima, aprofundando-se numa terra desconhecida e ameaçadora, em busca de outro homem, um renegado que traiu sua condição de civilizado. É a tradicional jornada em busca do conhecimento – o aventureiro vai encontrando pessoas as mais diversas, cada uma delas aportando algum tipo de experiência e amadurecimento necessário para que se conclua a jornada.

No caso de As Trevas Risíveis, Lotz se atém ao formato básico, mas propõe uma espécie de Mágico de Oz ensandecido. O primeiro-sargento Oliver Pellner recebe a missão de subir o Indocuche de barco (sim, o Indocuche, aqui, é um rio, e não uma cadeia de montanhas), na companhia do suboficial Stefan Dorsch, à caça do demente primeiro-tenente Karl Deutinger. Ao longo da expedição, a dupla topa com um posto de capacetes azuis da ONU comandado por Lodetti (e seu passado de criança drogada), com o reverendo Carter (um missionário que converte muçulmanas de mulheres de fé em mulheres da vida) e com o mercador Stojkovic (que se culpa por um bombardeio da OTAN ter massacrado sua família).

Ao chegar ao fim da jornada, e aí se justifica a referência ao Mágico de Oz, Pellner e Dorsch percebem que o todo-poderoso Deutinger não é de nada – como o grande mago que amedrontava a Cidade das Esmeraldas, é apenas um homem, triste e desesperançado homem. Mais que isso: europeu esgotado, colonizador possante que perdeu o viço e a convicção. É como se Lotz nos conduzisse até um anticlímax, oferecendo a amarga certeza de que um projeto colonizador cevado a manipulação, massacres e imposição de um modo de vida morreu.

O diferencial de As Trevas Risíveis é que Lotz, ao contrário de Conrad e Coppola, não centra a ação em apenas dois personagens: o caçador (Pellner) e a caça (Deutinger). Não se trata apenas de uma perseguição entre dois brancos de bons modos, tendo os aborígenes como figurantes. Dorsch, ocidental como Pellner e Deutinger, aparece como um antagonista a seu superior. Se Pellner disciplinada e mediocremente se limita a cumprir a missão que lhe foi imposta, Dorsch quer ir além – quer saber as ideias e ideais de Deutinger.

Dorsch é o complicador. Nasceu na Alemanha Oriental, não tem a vida sexual resolvida, é sensível e pode ser descrito como um ponto fora da curva. Habilmente, Lotz traz o conflito entre colonizador e colonizado para dentro da própria Alemanha, alertando que a opressão pode ocorrer dentro da chamada civilização. Mais que isso: estabelece uma relação de dependência entre Pellner e Dorsch que direciona o texto a uma autocrítica implacável. Além desses conflitos, há a história paralela de Último Michael Pussi, um pirata somali que está sendo julgado na Alemanha, e a quem cabe o prólogo inicial da peça, um monólogo tão longo como indispensável já que explicita a humanidade de um suposto “selvagem”. Uma civilização inteira que se revela, insuspeita. É o choque inicial.

A questão é que As Trevas Risíveis é um texto complexo, com um extenso prólogo no início e, principalmente, com um final hesitante e desafiador para qualquer encenador. As últimas cenas refletem a perplexidade da Europa em resolver conflitos fruto da expoliação colonizadora – refugiados, radicalização, incapacidade de absorver o que lhe é estranho. Lotz parece não saber o que fazer – o texto se paralisa na medida em que aponta para várias direções. O dramaturgo assume o conflito a ponto de deixar a peça praticamente em aberto.

Como Dill reage a tantos questionamentos que surgem de fora e de dentro do texto? O gaúcho de 33 anos firma o pé em suas convicções consolidadas em 10 anos de Grupojogo. Esteticamente, As Trevas Ridículas dá sequência ao estilo e modo de trabalho do coletivo: cinco jovens atores (entre 25 e 30 anos) praticam um teatro físico, de gestos não só ensaiados, mas orgânicos e justos, refletindo a formação de Dill, dividido entre o teatro e a dança (com Fauno, ele recebeu os prêmios Açorianos de Dança de direção em 2013).

Como em outros espetáculos que dirigiu, Dill também elegeu um material ou objeto como signo. Em Para Acabar com o Julgamento de Deus (2010), sobre textos de Artaud, valeu-se de areia e guarda-chuvas. Em Medeamaterial (2016), de Heiner Müller, peixes e uma pequena piscina de água. Em A Noite Árabe (2013), do alemão Roland Schimmelpfennig, blocos que se deslocavam pelo palco como um movediço labirinto. Em As Trevas Ridículas, o totem é um contêiner, símbolo acabado da exploração via esgotamento de commodities, representação perfeita de como os ocidentais querem obrigar os selvagens (os estranhos) a caberem em determinadas caixinhas.

O contêiner domina a cena. É um achado. Gira, avança em direção à plateia, serve de local de tortura, sugere passagem de tempo. É na materialidade do contêiner que Dill marca claramente as duas partes da peça: no início, a jornada de conhecimento com o contêiner intacto. Na segunda parte, em pleno olho da escuridão, o contêiner (a civilização, o equilíbrio emocional dos personagens) se esfacela.

A outra convicção de Dill é o tom politicamente correto que disciplina a encenação. Lendo o relato da criação feito por Michele para o Agora (http://bit.ly/2ujWaGt), sabemos que o diretor elegeu (a impossibilidade do) reconhecimento do outro como eixo. Durante os ensaios, os atores foram instados a lidarem com seus preconceitos. O próprio Dill, convidado ao Berliner Theatertreffen em 2016, cursou lá o workshop Gênero, Performance e Pós-colonialismo, orientado pela portuguesa Grada Kilomba, investigando a presença de preconceitos, misoginia e machismo na arte.

As assertivas de direção são explicitadas logo nas primeiras cenas. Pelo que se lê no script de Lotz, Último está prestando um longo depoimento à corte de Hamburgo, mas Dill submete o somali (vivido pelo ótimo Gustavo Susin) a uma luz chapada sobre a cabeça e a jatos d’água no rosto. É para Último estar se defendendo frente a um tribunal isento, mas a cena o mostra como um pé de chinelo sendo torturado. O esforço do pirata é inútil: ele está condenado a priori.

A primeira parte da peça se desenrola sob o signo do impacto visual do contêiner, da efetividade do elenco homogêneo e do brilho do protagonista Pellner, vivido por Frederico Vittola. Arrogante, autossuficiente, vaidoso de seu corpo (que inclui um penteado à la Hitler), mas lá no fundinho inseguro e imaturo, Pellner é a quintessência do colonizador. Alguns achados de direção: a dependência de Pellner e Dorsch (Vicente Vargas) fica explícita quando o primeiro-sargento se senta na ponta de uma telha em balanço, à beira do palco, só não despencando porque seu subordinado está com o peso na outra ponta. O desprezo materializado no chiclete que Pellner cola numa planta prova que humor e detalhes são de ouro.

Em uma encenação marcada pela atuação sempre acelerada, exata e com energia, a cena quando o reverendo Carter narra suas desventuras de drogado teen, que Lucas Prado interpreta com olhos marejados, surge como uma exceção bem-vinda, um respiro emocional na peça. Outra cena de raro humor e sutileza, quando Pellner e o reverendo disputam ridiculamente o microfone em cena. A peleja de tom quase pastelão sinaliza o que de sério está por trás das trevas: de quem é o discurso? Quem vai assumir a palavra?

O intervalo serve para Dill resgatar um trecho em 1ª pessoa em que Lotz autoquestiona seu próprio machismo – isso, ao som de o elenco cantando The Lion Sleeps Tonight como se fosse uma canção de trabalho, preparando o cenário para a segunda parte dos 100 minutos de peça. É um momento de declaração política da encenação: o próprio Dill dá as falas numa tela de TV, e uma câmera segue atores fora da sala do teatro, reforçando a ideia de que ficção e realidade, palco e público se confundem e compartilham problemas. Soluções?

A resposta de As Trevas Ridículas é uma segunda parte tomada pela escuridão (e aqui cabe elogiar o desenho de luz de Lucca Simas). A relação entre Dorsch e Pellner se torna mais próxima e conflagrada, a expectativa de concluir a missão e de estar próximo a uma grande revelação estressa a todos. A encenação, a partir daí, parece espelhar a desorientação dos personagens. Pellner e Dorsch alcançam Deutinger, mas este frustra os dois militares com sua pregação pífia e frustra também o público ao atuar de costas, ao microfone, com a voz deliberadamente deformada. É o anticlímax de fato – o poderoso Oz desmascarado, um charlatão por detrás da cortina, a palha podre.

A aparente decisão do diretor de desautorizar o personagem que, afinal, é a razão de toda a jornada, acaba por enfraquecer algumas falas importantes e o próprio final da peça. Seria o momento de a trinca Pellner, Dorsch e Deutinger promover um choque de titãs sobre o palco: os dois primeiros como os filhos que finalmente encontram seu pai; e Deutinger como o sábio que nada pode ensinar a não ser o horror. Mas a encenação assume o estilhaçamento que Lotz promove no final do texto: Dorsch não brilha, Deutinger é um traque, resta o carisma viril e vazio de Pellner.

Para afirmar o que seria o conflito politicamente mais evidente – a luta dos oprimidos para ter voz – Lotz promove no final o surgimento de Tofdal, companheiro de infância e de pirataria de Último. Ele tenta afirmar sua narrativa frente a um Pellner simplório e simplificador, alguém que, quando ouve a palavra cultura, saca logo a arma. E ele saca mesmo.

Tofdal surge do escuro da plateia, usando uma máscara que basicamente lhe ilumina os olhos. É emocionalmente mobilizador que ele apareça do meio dos espectadores, mas a impessoalidade da máscara (note-se que todos os selvagens que aparecem em cena portam máscaras) e a forma pouco espetacular como ele tenta enfrentar Pellner, ainda que denunciem a fragilidade dos (neo)colonizados frente aos (neo)colonizadores, abalam qualquer ilusão de superação do conflito. A força do oprimido reside em sua fidelidade, mesmo face à eliminação, a seu jeito de narrar, de lembrar, de sentir e de lutar. Na medida em que a encenação desloca a emoção, esses traços também perdem espaço na cena. 

Verdade que o texto parece levar nessa direção: os selvagens pouco falam, pouco agem, apenas cantam naquele jeito bem colonizado de ser. Isso talvez pela inibição do dramaturgo de assumir a voz de quem ele não conhece – no texto em 1ª pessoa já mencionado, Lotz confessa que “de algum jeito eu sempre fico em dúvida se não falta veemência para a pessoa se ela tiver a tarefa de escrever sobre alguma coisa que lhe é estranha". Nesse sentido, As Trevas Risíveis se mantém em sua zona de segurança. O que seria passo adiante no território do outro, inclusive correndo o risco de assumir a narrativa do outro, ou se dá no tribunal, ou é calado a bala. Uma atitude que talvez até exponha a realidade de forma necessariamente bruta e impiedosa, mas que também significa a renúncia a possibilidades que enriqueceriam a encenação.

Dill parece evitar deliberadamente uma aproximação emocional mais estreita do público. No esforço de transformação do espectador, ele joga em grupo (e o trocadilho cabe porque é revelador): articula o equilíbrio potente dos elementos de encenação, impõe um tom distante do naturalismo, emprega signos fortes. Não há chance de adesão acrítica do espectador. O efeito colateral é que se dificulta um acesso emocional que serviria para garantir flutuação do ritmo do espetáculo e desmontar a impressão de esteticismo que se leva demasiadamente a sério. Esse efeito desestabilizador e benéfico, como já citamos, aparece pontualmente e com brilho na confissão emotiva de Lodetti. E caberia muito bem para potencializar a cena entre Tofdal e Pellner. 

Resta desaproveitada uma das falas mais significativas do texto original, quando Deutinger relata que Dorsch falou a Pellner que gostaria que ambos, mesmo não se tornando amigos, ao menos se reconhecessem. Ao que Pellner teria dito algo como “Pode ser”. Inútil tentar compreender a resposta. Pellner – o colonizador cruel e de franjinha besta – não aprendeu, não sabe e não quer reconhecer o outro. Nesse sentido, a montagem de Dill, se não nos comove, nos joga na cara a incômoda certeza de que não há saída da escuridão. Como Lotz expressou em entrevista ao Agora (http://bit.ly/2tDAbNe), nunca conseguiremos reconhecer os outros pelo que temos em comum; é indispensável que enfrentemos a escuridão que em nós reside. Podemos até rir das trevas, mas é de nervoso.