MAMÃE
Michele Rolim (RS), de Porto Alegre, 22/05/2017
Espetáculo propõe um sutil equilíbrio entre o real e a ficção, com atravessamentos que vão desde depoimentos pessoais a histórias imaginadas Foto Andre Maceira
Peça é protagonizada, escrita e codirigida por Álamo Facó, que evoca no palco os cem últimos dias da mãe, diagnosticada com câncer no cérebro

Deixar ir

Mamãe, atração do Festival Palco Giratório SESC/POA, tem como assunto central a morte. A peça, no entanto, é uma celebração da vida. Protagonizada, escrita e codirigida (em parceria com Cesar Augusto) por Álamo Facó, Mamãe é um trabalho extremamente autoral, evocando os cem últimos dias da mãe do ator, chamada Marpe, diagnosticada com câncer no cérebro.

Álamo Facó interpreta a mãe e a si mesmo usando os nomes fictícios Marta e Lázaro, deixando evidente que tudo que está em cena é sua versão dos fatos - uma das falas é “ciência é fato, e crença é afeto, isso é um fato-afeto”. Os nomes Marta e Lázaro não são escolhidos por acaso. Na Bíblia, os dois são irmãos com características bem marcantes: ela é conhecida por nunca perder a fé, e ele por ter sido ressuscitado por Cristo.

Há na encenação uma característica de estranheza e delírio. Em diversos momentos, o ator incorpora ritmos de dança e imprime sensações no seu corpo, assumindo a condição de performer ao sair do personagem Lázaro e dar voz a Álamo ou ainda quebrando a quarta parede quando pede a interação do público.  

O espetáculo também é extremamente imagético, a começar pelo cenário que em nada lembra um ambiente hospitalar. A cenografia, assinada por Bia Junqueira, está mais próxima de uma instalação. Três cadeiras de acrílico vermelhas estão dispostas como se formassem um leito de sua mãe, e vaporizadores de ar também estão presentes. No teto, estão penduradas mangueiras de luz. Também há luzes de neon espelhadas pelo ambiente e um cacto. O ator traz alguns quadros para a cena, inclusive um em que ele aparece travestido de Frida Kahlo. Essa ambientação contribui para o delírio onírico do personagem/persona.

Aliadas a isso, estão as palavras. Em determinadas cenas, o ator descreve de forma detalhada como foi o procedimento cirúrgico sofrido por sua mãe, além de relatar que o tumor tinha o tamanho de uma maçã e lembrar-se de diálogos entre seus pais.

A montagem carrega consigo uma denúncia: a preocupação com a enfermidade, deixando-se de lado o indivíduo.  “Ao invés de se perguntarem que doença essa pessoa tem, deveriam se perguntar que pessoa essa doença tem”, afirma o ator em cena.

A crítica é contundente não só à desumanização da medicina como também à indústria farmacêutica. Submetidos a um mercado altamente lucrativo, os pacientes raramente são consultados acerca de seus desejos. Mas Mamãe contesta isso de forma emocionante: em uma das cenas, ao perceber que sua mãe voltou do coma e está morrendo, o filho fala ao celular com o pai e este lhe pede peça por socorro. Até que o filho se conscientiza que o melhor a fazer é deixar a mãe ir.  Ele, então, agradece por tudo e convoca a plateia a aplaudir.

No final da montagem, o ator diz: “não foi assim que aconteceu”. Essa frase provoca uma ruptura na encenação e faz com que o espectador se pergunte: “O que eu estava vendo era ficção ou real?”. Mas isso pouco importa.

Desde o início, Álamo não propõe um pacto de veracidade com o espectador. Tanto que começa o espetáculo com falas da personagem Marta que antevê as mudanças que ocorrerão nos próximos dias de sua vida. “Teresa me espera na terça. Não vou estar lá”.

Ao mesmo tempo, ele utiliza documentos do real, como a foto de sua mãe, e deixa claro que o que conta em cena são os cem últimos dias de vida dela. No entanto, é perceptível que há no personagem uma camada fabular, Álamo é apresentado como Lázaro e Marpe como Marta.

A peça propõe um sutil equilíbrio entre o real e a ficção, com atravessamentos que vão desde depoimentos pessoais a histórias imaginadas ou desejadas pelo ator.

Esse jogo está a serviço dessa “cerimônia” de despedida que Álamo faz a sua mãe. O que o espectador vê diante de si, e por isso, muitos vão às lágrimas, é um filho expondo a sua dor e tentando se despedir, e para isso se valendo da arte. Deixar ir quem amamos requer coragem, e Álamo a tem.