BRECHÓ DA HUMANIDADE
Renato Mendonça (RS), em Porto Alegre, 04/11/2016
Hannah Arendt e de Vladimir Herzog servem de inspiração para montagem de Liane Venturella em cartaz no 8° Fitrupa
Bibico (Rudinei Morales) recebe a plateia para um chá em que se discute o compromisso com a generosidade. Crédito: Márcio Camboa

O escambo em que todos ganham

Seu Bibico é o nome do personagem que Rudinei Morales interpreta no monólogo Brechó da Humanidade, uma das atrações do 8° Fitrupa. É um velhinho fluente na linguagem da amizade e de humor rápido: recebe educadamente seus convidados em uma sala grande, atulhada de bonecos, rádios antigos, louças delicadas, luminárias do tempo do onça. Não há lugar no aposento que não desperte a atenção, não sugira uma história, não proponha uma ponte entre passado e presente. Impossível não correr os olhos para tentar mapear minimamente o brechó enquanto se aproveita o chá que o anfitrião boa praça oferece aos visitantes. Fica claro: Bibico é um acumulador. Mas de quê?

Devido à superlotação da sessão, ocupei o fundo da sala, obrigado a permanecer de pé durante os 40 minutos de espetáculo. Mas bastou serem estendidas as primeiras xicrinhas fumegantes para me dar conta: o Brechó da Humanidade já tinha se iniciado para mim duas horas antes de subir as escadas do casarão antigo do Centro Histórico de Porto Alegre, guiado por Bibico. Começou na sala do apartamento de minha tia, depois do almoço em família, quando me perdi em memórias observando os bibelôs, louças e fotografias que ela mantém expostos em um armário da sala, como um altar ao tempo. De alguma forma, Seu Bibico e minha tia me propunham tomar da xicrinha da memória.

No caso de Brechó da Humanidade, a narrativa que movimenta a roda de chá é a da vida da filósofa judia Hannah Arendt (1906-1975), nascida na Alemanha. De forma sucinta, se rememora como foi sua educação, suas posições frente à violência de Estado e ao preconceito, a indispensável busca de humanidade, a noção de culpa e de identidade, a relação complexa que manteve com o filósofo alemão Martin Heidegger. E se afirma uma das principais reflexões de Hannah: a vida de todos e de cada um deve ser organizada na forma de história para que com ela possamos lidar. Evidentemente, a qualidade dessa narrativa depende do quanto de profundidade, generosidade e veracidade seja utilizado. E a forma como se conta a história - o teatro bem o sabe – também é determinante para o sucesso da empreitada.

É justamente na maneira de narrar que Morales e a diretora Liane Venturella acertam na mão, ao se valerem de objetos industrializados e à primeira vista desimportantes para contar histórias dramáticas e de impacto. Alguns exemplos disso: Hannah ganha a forma de uma sineta de mesa, estridente, incisiva, com a vocação e o talento do alerta. Um sino maior e mais antigo incorpora a pessoa de Heidegger. Ao lembrar as frases cortantes que Hannah criava, ouve-se o entrechoque de metais. Os párias, as minorias e os descartados pela supremacia são simbolizados por prendedores de roupa, ansiosos por se unirem a algo, por encontrarem um fio que os conduza e fixe. O nazismo é o bruto martelo, com formas elegantes e implacáveis. Os recursos de iluminação se resumem a uma lanterna e à regulagem de uma luminária de mesa, feita pelo próprio ator em cena

Mais ao final, tenta-se um paralelo entre a trajetória de Hannah e a do jornalista brasileiro Vladimir Herzog (1937-1975), nascido na então Iugoslávia, morto sob tortura durante a ditadura militar (1964-1985). Mas a história de Herzog é exposta de forma superficial, o que enfraquece o objetivo de aproximar a experiência dos totalitarismos na Europa e no Brasil. Na comparação possível, Hannah surge como alguém que analisa e desmascara a atrocidade, Herzog apenas (na falta de palavra melhor, e sem minimizar a tragédia envolvida) uma vítima. A profundidade das narrativas é desigual.

De toda maneira, seja pelo brandir de um martelo ou pelo devaneio potencializado pela experiência pessoal, ao tinir das xicrinhas, Brechó da Humanidade exige um compromisso inadiável: assumir a responsabilidade de construir nossa história de vida. Na medida em que aceitamos as narrativas impostas, sugeridas, deturpadas ou manipuladas por outrem, decaímos individual e politicamente na passividade acrítica que gerou monstros descoloridos mas mortais como Eichmann.

Seu Bibico é, de fato, um acumulador - mas um acumulador do bem. Adverte que seu brechó não vende objetos (memórias, conquistas, descobertas), mas se dispõe a trocas. É o exercício último da humanidade: reconhecer o outro, mais exatamente a narrativa do outro. Nesse escambo, todos saímos ganhando humanidade.

Crítica produzida dentro do seminário “As manifestações cênicas de rua - processo e crítica", durante o 8° Fitrupa