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A década de 1930 viu surgir na Alemanha seu novo Chanceler. Aproveitando-se do fracasso de um projeto de recuperação econômica e com foco na recriação do nacionalismo, pouco tempo depois, Adolf Hitler se tornaria um dos nomes mais horríveis da história recente. Em 1933, o discurso do ditador antecipava o conflito tenebroso que se revelaria a Segunda Grande Guerra. A partir daquele instante, muito na Alemanha se transformaria. E logo se viu esfacelar a sociedade e demais estruturas políticas. Foram restrições, proibições, exílios, isolamentos, torturas, genocídios, extermínios em um crescente ódio estimulado e propagado contra os que não se encaixavam no desenho da raça pura e ideal, tal como a entendiam os nazistas; dentre os visados, gays, negros, ciganos, deficientes físicos e mentais e, principalmente, judeus. As ações ocorreram em todas as possibilidades que o indivíduo pudesse expressar suas ideologias, diferenças, particularidades, religiões, culturas. Por conseguinte, também, e muito, na arte foram encontradas o que seriam deturpações frente ao programa nazista. Dois instantes se tornaram simbolicamente históricos nessa intervenção cultural: o Bücherverbrennung, a queima de livros em praças públicas, com a inclusão de autores judeus e de esquerda, como Brecht, Freud, Einstein, Thomas Mann, Walter Benjamin, Karl Marx e tantos outros; a exposição conhecida como Entartete Kunst, Arte Degenerada, na qual obras eram ridicularizadas para construir uma opinião de escárnio e recriminação aos trabalhos e artistas modernos, abrigando Chagall, Max Ernest, Kandinsky, Klee e dezenas mais. Contudo, nos acontecimentos menos relembrados, também ocorreram perseguições nem por isso menos violentas, atingindo compositores, maestros, dançarinos, cantores... e, claro, artistas de teatro.
Em Stoptersteine Staatstheater, apresentado no Berliner Festspiele, durante o Theatertreffen, em Berlim, com Hans-Werner Kroesinger como diretor e Regina Dura como dramaturg, documentos e cartas do arquivo do Teatro Karsruche são trazidos a público para expor a relação da instituição com os artistas judeus, esquerdistas e liberais durante a ascensão do nazismo. Apoiados por entrevistas com testemunhas e por reportagens feitas à época, a peça narra os procedimentos legais que serviram de base para expulsão, demissão, exílio e prisão dos artistas, de atores ao diretor artístico. As respostas ao cerceamento e perseguição provocaram inclusive gestos mais extremos como o suicídio.
O elenco formado por Veronika Bachfischer, Antonia Mohr, Jonathan Bruckmeier e Gunnar Schmidt recebe o público no interior do teatro. Os atores explicam algumas questões técnicas, e o espetáculo começa de fato quando, reunidos, eles cantam em tom de prólogo. Esse movimento, cantar, retornará algumas vezes durante a apresentação como que nos convidando a participar do coral. Convite explícito na medida em que todos recebem a partitura e a letra das canções. Ao surgir no imediato início, a cantiga evoca décadas passadas, mesmo para quem, como eu, não seja alemão, no reconhecimento de uma linguagem musical bastante específica e local. Ser recebido assim auxilia no deslocamento ao passado, facilitando ao espectador mais jovem compreender com mais ênfase o ontem a partir da perspectiva do presente, o que parece ser a grandeza do trabalho. Reaproximado à ambiência histórica, o espectador é convidado a se juntar aos atores em uma das duas arquibancadas e à mesa que comporta a centralidade do palco. Optei pela arquibancada, pois me interessava assistir também àqueles que preferiram estar figurando a cena.
Como em uma reunião de departamento, os depoimentos e documentos são apresentados de forma a construírem uma narrativa subjetiva, cujo interesse está nas mudanças estruturais impostas pelos nazistas. Não parece aleatório o conjunto das mesas desenhar sutilmente um dos dois ramos que compõe a suástica, algo imperceptível aos espectadores que junto a ela estão. A cenografia completada por dois telões laterais e por projeções, ora de detalhes arquitetônicos, ora de registros de ações, traduz a condição de como uma mudança mesmo que radical, ao menos em seu início, não é percebida, sobretudo pelos que estão intrinsecamente conduzidos pelas estruturas. Uma espécie de cegueira provocada pela sensação de normalidade que as burocracias conferem, a partir das legislações e justificativas falsamente imparciais. Assim, os espectadores sentados junto à mesa decisória servem como testemunhas em uma espécie de conselho deliberativo e acabam por encarnar mais a ficcionalização da história do que os documentos, papéis, cartas e também atores.
Ao subverter e manipular aqueles que ali estão, sem que mesmo ao final estes sejam capazes de perceber a medida de sua participação já que as mesas serão desarrumadas para constituírem um espaço fictício museográfico com os materiais reais para consulta pública, o espetáculo indaga também sobre qual é a responsabilidade de nossas participações na validação dos acontecimentos históricos. Se somos incapazes de compreendê-los na imediatez de sua provocação, como lidar, então, com a responsabilidade inconsequente de nosso desconhecimento? De certo modo, Stoptersteine Sttatstheater responde ao dilema com a importância de se manter desconfiança ininterrupta dos sistemas de controle.
Todavia, está longe de ser um espetáculo com intuitos anárquicos, é sim voltado à responsabilização das escolhas e ausências. O movimento desencadeado principalmente por Hitler pode até ser entendido por alguns como algo inimaginável tais os absurdos praticados, mas não se pode negar que os desdobramentos abomináveis do nazismo estavam desde sempre indicados em seus propósitos iniciais. Vejamos: monstruosidade difere de loucura por abrigar em seu processo cálculo e destreza nas manipulações, a partir de argumentos deformados sobre necessidades concretas. Em outras palavras, o nacionalismo como argumento não significa necessariamente explicitar a destruição de tudo aquilo que não lhe servir; é ele, em certa medida, a possibilidade de um discurso útil à construção de sentimentos fundamentais de união e de reencontro; todavia, é, sim, ao se valer desde o início como discurso sobre o outro, e não apenas sobre si, a negação da diferença, o que vai exigir anulação e extinção de quem não se enquadra no padrão. Hitler, em seus discursos iniciais, evocava sentimentos de união, mas é preciso atentar que esta se fazia principalmente pelo aniquilamento de diferenças. Surgiu, inevitavelmente, o horror.
Construída de forma documental, a montagem supera o aprisionamento da narrativa ao descritivo e às apresentações de acontecimentos. O passado, tal qual é costurado dramaturgicamente, serve para ser percebido em seu estado de latência, ao qual se deve estar atento e disponível ao reconhecimento imediato. Por utilizar histórias reais, o documental sustenta a urgência de observação do presente a partir de suas próprias características, como se pudesse ser ampliado em laboratório na busca de pistas das interferências definitivas. Assim, o espetáculo faz perceber estar a manifestação teatral mais no instante presente do que no registro passado, faz compreender ser o agora o instante de ações fingidas e artificialmente moldadas para que se pareçam casuais. E revela, por sua vez, o passado como uma espécie de literatura sujeita ao risco de perder-se em sua própria ficção. Nem todos os trabalhos que lidam com tais procedimentos cênicos superam esse paradoxo, permanecendo quase sempre limitados ao passado como estável e a um presente demasiadamente figurativo. A eficiência em Stoptersteine está sobretudo na maneira como os performers se valem de si mesmos como personagens, confundindo-se entre a realidade do intérprete frente aos documentos e da personagem frente ao público. Aquele que ocupa o palco pode ser qualquer um desses, e não importa decifrar o labirinto.
O recurso de construir uma narrativa a partir da recuperação de documentos exige vasta pesquisa e inovação ou ousadia na metodologia que orienta o recorte. Esses aspectos, sem dúvida, confirmam-se sem problema algum. Ao trazer a história do teatro para falar de como a história fora construída em desvios de sua narrativa, o espetáculo sintoniza-se com precisão aos estímulos mais contemporâneos do fazer teatral, nos quais se busca a dissolução do personagem, e onde a narrativa se afirma pela expectativa do processo de sua construção, não só pela fábula encenada.
É preciso pensar, ainda, na museografia proposta aos documentos disponíveis à consulta do espectador como resposta e conceito de procedimento teatral, frente ao que o espetáculo já realizara até aqui. É nesse instante, quando todos estão reacomodados em arquibancadas fora de cena, que o teatro assume-se exclusivamente teatro, oferecendo-se, ao fim, o palco às pessoas comuns. O espectador deixa de existir como figurante e volta a ser ele mesmo, anônimo, e no encontro com os documentos pode comprovar aquilo que servira aos argumentos da montagem.
No entanto, por que compartilhar essas provas? A que serve senão para validar a própria pesquisa? Ao se fazer isso, os argumentos do espetáculo são corroborados por suas importâncias histórico-educativas, mais do que artísticas, o que não é radicalmente necessário. O jogo teatral se concretiza interessante pela maneira como subverte a perspectiva de apropriação do tempo histórico e sua representação, deixando a informação como possibilidade criativa e desvelamento do presente e não apenas do passado. Melhor seria, então, a partir das conquistas realizadas, que o espectador fosse provocado a confirmar nas ruas, nas pessoas, nos gestos as possibilidades de tais acontecimentos a partir de seus ecos e não de suas literalidades. Dessa maneira, o intuito de inquietá-lo seria expandido para além da sala e das sensações imediatas que, quase sempre, oferecem conclusões esgotadas no próprio instante em que são percebidas.
O tema interessa principalmente por sua abordagem e por fazer da ação teatral um alerta na forma de metateatro, na medida em que o espetáculo fala sobre a arte e o artista em seu estado de submissão e destruição por conta dos interesses do poder. Também a encenação é eficiente esteticamente no jogo de criar símbolos e sensações. Os performers, especialmente do elenco feminino, são precisos no trânsito entre eles mesmos e os personagens. Sendo, porém, o teatro mais do que texto e estética, também a potência de sua experiência, a linguagem poderia arriscar-se a ir além da utilidade, ambicionando desestabilizações maiores. Como seria se todos os documentos sugerissem ser parte reais e parte fictícias, por exemplo, ainda mantendo a ideia da montagem do memorial final? Como provocar o espectador a ter menos certezas, ainda que informado? Como lidar com os riscos de um passado ainda subliminarmente não finalizado? Como tornar experiência teatral a perspectiva de um vivenciar histórico na construção simbólica do presente? Stoptersteine Staatstheater realiza bem a parte que lhe interessa de aula de história e suas respostas de alerta, contudo falta-lhe como linguagem teatral a ousadia de ser capaz de provocar no espectador silêncios e explosões.
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STOPTERSTEINE STAATSTHEATER
Direção: Hans-Werner Kroesinger
Com: Veronika Bachfischer, Antonia Mohr, Jonathan Bruckmeier e Gunnar Schmidt
Cenografia, figurinos e vídeo: Rob Moonen
Música: Daniel Dorsch
Colaboração artística e versão do texto: Regine Dura
Dramaturgia: Annalena Schott
Educação teatral: Verena Lany
Foto: Florian Merdes