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Foi em 1966, que Jorge Amado (1912-2001) publicou o romance Dona Flor e seus dois maridos. Já havia cerca de quinze romances anteriores, também biografias e poesias, e sua importância à literatura brasileira era então indiscutível. O escritor baiano é um dos nossos mais traduzidos em outros países, e, com o passar dos anos, o respeito com sua obra se expandiu para além das fronteiras locais. Hoje, é referência a literatos na produção em português pela qualidade da escrita, aos pesquisadores pela modernidade de suas narrativas e ao imaginário popular, consequência de suas escritas continuarem adaptadas aos cinema, televisão e teatro. Com Dona Flor e seus dois maridos não seria diferente. A versão em formato de minissérie, adaptada do romance por Dias Gomes, e a em filme, dirigida por Bruno Barreto, marcaram definitivamente a obra por gerações. Se, na Globo, a ótima atuação de Giulia Gam no papel principal dialogava de forma precisa com Vadinho (marido morto que retorna em espírito para oferecer os prazeres que o atual não lhe provoca) de um carismático Edson Celulari, nada superou, até agora, o brilhantismo da dupla interpretada nas telas de cinema por Sônia Braga e José Wilker, referências maiores quando pensado o livro. Arriscar-se, portanto, a trazer ao palco o romance é dar conta de expectativas e comparações, o que torna tudo mais complexo. Todos trazemos as referências dessas interpretações ainda vivas em nossas lembranças por suas cenas antológicas. Poucos, infelizmente, é verdade, propriamente pela leitura.
Com direção tríplice de Zé Adão Barbosa, Carlota Albuquerque e Larissa Sanguiné surge nova adaptação ao teatro, após a montagem carioca que iniciou temporada com Carol Castro e teve algumas substituições durante o percurso. Por ser o palco espaço radicalmente diverso às condições dos estúdios e gravações, comparar os resultados seria exercício inútil. Cabe perceber o que na versão musical gaúcha se realiza mais próxima às perspectivas de Jorge Amado. E é nesse movimento de volta ao autor que algumas questões surgem problemáticas e fundamentais.
Quando o escritor optou por incluir os universos das putas, amantes, dos casamentos, dos desejos, confrontando-os ao conservadorismo das situações corretas, dos bons modos e valores sociais que se esperariam das pessoas tidas por decentes, dos vizinhos controladores e fofoqueiros, trouxe ele o prazer como instrumento de libertação ao homem e à mulher, o gozo como única importante satisfação em uma sociedade despudorada nas entrelinhas e fracassada nos disfarces, e, sobretudo, mascarada pela ordem. Não nos esqueçamos de o romance ter sido escrito em plena Ditadura Militar, que tinha Jorge Amado como comunista perigoso a ser perseguido e combatido. Suas ideias sobre a liberdade, portanto, permeiam no romance o existir pleno ao indivíduo apenas no submundo dos cassinos, bares, casas de prostituição, ruas, carnavais e vielas reservadas ao inapropriado. E, por que não?, nas camas das famílias publicamente mais conservadoras, quando escondidas e protegidas da sociedade. Assim como a realidade e verdade quase sempre permitida pelo hálito embriagado. Na montagem do espetáculo, no entanto, tais questões se limitam ao papel de fazer o público rir daquilo que poderia ser um desconforto moral, tratando as cenas de sexo e nudez com ironia e caricatura. Acaba o espetáculo assumindo em estética os mesmos valores que a obra tenta combater e desmitificar. Ainda que os personagens tenham sido escrito propositadamente para serem divertidos, há neles a dubiedade da explosão dionisíaca, cujo descontrole é o elemento de sustentação ao viver. Nada disso existe no espetáculo. Nem mesmo como sutil apontamento. O que leva Vadinho a ser o homem viciado em mulher, putaria, jogo e bebida, sem somar a isso o ser também alguém feliz apenas nesses estados de libertação da consciência; e Flor, resumida na mulher traída, trouxa, submissa, esquecendo-se da importância de ser ela o tom de segurança ao homem, quando este se depara com as realidades definitivas, necessitando do outro como sustentação de si próprio. No romance original, Flor é a mulher que escolhe explodir as tradições e convenções e se entrega ao amor e prazer; Vadinho a alma em sonho incapaz de sobreviver à própria paixão de amar a vida mais do que a si mesmo. O espetáculo opta pelo resumo simplista de ambos e dos demais. E sobra ao público somente outra comédia, com ares menos apaixonados pela vida e mais próximos à artificialidade das pornochanchadas banais.
Igual desprendimento no aprofundar as escolhas se verifica também na encenação. Abstendo-se de ser político, de ser metafórico, de ser representativo ao nosso tempo ao atualizar-lhe os contextos da obra, estabelece o paradoxo de ter ora elementos transformados em outros, ora janelas que se insistem como tais para demarcar os ambientes onde as cenas ocorrem. Nenhum dos dois mecanismos de construção à narrativa chega a surpreender ou supera as estruturas cênicas mais básicas. O espetáculo, ao se querer ser apenas um musical a partir da história, deixa de ter a musicalidade da prosódia do escritor, tão própria e especial. Ainda que o acompanhamento musical seja em alguns momentos realmente interessante, este se realiza plenamente, nessa estrutura tão característica dos espetáculos musicais, nos raros momentos em que é menos ilustrativo e mais dialógico e sobreposto ao que ocorre no palco. A tonalidade baiana se perde, por fim. Não bastam roupas típicas, colorir a cena ou toques de candomblé para dar conta da profundidade com que Jorge Amado utilizou-se da Bahia para falar do Brasil mais profundo e popular.
Dona Flor e seus dois maridos, o livro, ainda carece no teatro de um espetáculo que vá além de sua apropriação para a construção de produtos voltados ao entretenimento, quando se oferece ao livro a facilitação do seu entendimento e o prazer de um boa diversão, por mais que isso também exija trabalho e muito dos participantes. A plateia, é preciso dizer, ao término, urrava, delirava de satisfação. Mas não perceberam, talvez, a embriaguez deliciosa que a falta de verticalidade oferece e provoca ao espectador, facilitando-lhe e pouco exigindo de suas reflexões mais profundas. Jorge Amado possivelmente estaria agora assistindo à televisão, lendo um livro, ou melhor até, escrevendo outro, enquanto as mulheres, com Zélia na cozinha, na companhia dele mesmo e sua máquina de escrever, pois era ali verdadeiramente seu escritório, imbuído de sabores, aromas e conversas. E teria provavelmente desistido das salas de espetáculo. Enfim, não foi dessa vez. De novo.
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DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS
Texto: Jorge Amado
Direção: Zé Adão Barbosa, Carlota Albuquerque e Larissa Sanguiné
Elenco: Kaya Rodrigues, Cassiano Ranzolin, Tom Peres, Álvaro RosaCosta, Giovana de Figueiredo, Maya Rodrigues, Leo Maciel, Angela Spiazzi, Bruno Pontes e Emílio Farias
Musicistas: Simone Rasslan (voz e piano) e Kiti Santos (flauta e cello)
Direção musical, trilha sonora original e arranjos: Simone Rasslan e Álvaro RosaCosta
Iluminação: Bathista Freire
Assistência de iluminação: Daniel Fetter
Vídeos: Daniel Jainechine
Figurino: Zé Adão Barbosa
Trilha pesquisada: Simone Rasslan e Zé Adão Barbosa
Letras: Ronald Augusto, Denise Martins e Álvaro RosaCosta
Cenotécnico: Paulo Pereira
Assistência de cenotécnica: Jony Pereira
Operação de som: Beto Chedid
Consultoria técnica de som: Marcelo Bullum
Fotografia: Adriana Marchiori
Assessoria de Imprensa: Liane Strapazzon
Confecção do lustre: Daniel Jainechine
Preparação musical: Simone Rasslan
Contrarregra: Carol Ferraz, Gustavo Dienstmann e Jony Pereira
Aderecista de cabeça: Gustavo Dienstmann
Aderecista: Dinara Dorneles
Direção de produção: Joice Rossato
Produção executiva: Ana Cristin