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Ele tinha quinze, dezesseis, dezessete anos. Sentia que não pertencia à sua vida, como se tivesse errado de endereço. À sua volta todos dançavam muito, falavam muito, viviam em bando, se divertiam. Contavam sempre as mesmas anedotas: do último porre, daquela viagem de ácido muito louca, dos melhores baseados, das primeiras transas (descritas com aquela falsa indiferença juvenil que queria se fazer passar por experiência). Tinham quinze, dezesseis, dezessete anos e pareciam achar que aquela era a melhor época de suas vidas. Ele não. Não cabia em seu corpo, que transbordava de pelos esquisitos e espinhas dolorosas. Adolescer era um sofrimento para o qual ele ainda não havia encontrado nenhum nome. Um dia, numa festa, ficou inquieto quando uma amiga disse que estava angustiada. A palavra era bonita: an-gús-ti-a. Tinha o sabor de uma fruta exótica, de uma fruta que ele jurava nunca ter comido. Foi quando leu num desses livros que só se leem aos quinze, dezesseis, dezessete anos, que a vida está em outro lugar. E acreditou. Afinal, a vida, a vida de verdade, tinha que estar em algum lugar! Ele tremia de medo pensando que não viveria o suficiente para conhecê-la. Muitas noites, com o próprio sexo nas mãos, rogava a Deus para não morrer virgem. Por acaso, descobriu um programa de intercâmbio escolar e acabou se mudando para a Holanda, atraído pela miragem da maconha liberada. Quem sabe dali não viriam outras libertações? Mas, chegando lá, o sentimento de estrangeiridade radical só se agravou. Naquela época, Camus foi um vício. Aprendeu holandês lendo as legendas de uma novela americana, The Bold and the Beautiful. Aquela língua estranha, assim sem ele perceber, se gravou nele. Uma língua-mãe que se escolhe aprender às vezes é mais pregnante que a língua e que a mãe que nos foram destinadas pelo acaso.
Quando voltou do ano de intercâmbio, seu pai, tentando uma reaproximação, começou a levá-lo para os shows de jazz que frequentava compulsivamente. Aos vinte, vinte um, vinte dois anos de idade, o garoto viu e ouviu músicos cujos nomes nunca conseguia lembrar, mas que seu pai sempre dizia que eram “bons pra caralho”. A sensação que tinha nesses shows era esquisita. As primeiras notas já o transportavam para muito longe dali. O fato de que os músicos pareciam tocar mais para si do que para os outros era um pretexto para ele se desconectar. Em geral, ficava pensando na vida que poderia ter sido, ou na vida que ainda poderia ser, mas que… Muitas vezes, se sentia culpado por não conseguir desfrutar devidamente daquele privilégio, já que os concertos costumavam ser caros: até achava os músicos tecnicamente bons, mas parecia que alguma coisa lhe faltava, talvez um sentido mais apurado para fruir o que não cabe em palavra nenhuma, a liberdade de se entregar a um fluxo de sensações mais brutas, abstratas, resistentes a uma compreensão racional.
Aos trinta, trinta e três, trinta e cinco anos, seu corpo continuava não vestindo bem, mas ele tinha uma vida que os outros consideravam boa. Ou, pelo menos, normal. Mulher, filho, um trabalho que lhe permitia viver sem grandes preocupações financeiras. Eram tantas as obrigações a cumprir que ele só raramente se lembrava de que a vida ainda não tinha lhe dado nem um décimo do que ele esperava. Como quando era garoto, ele continuava com medo de morrer cedo demais. Pelo menos, já não era mais virgem.
Aos quarenta anos fez uma viagem a São Paulo, para cobrir um festival internacional de teatro. Algumas pessoas consideravam que ele era um crítico teatral, embora aquela roupa lhe caísse como um terno alugado numa loja de segunda mão. Foi ver uma peça de um diretor belga, chamada An Old Monk. Como sabia que teria de publicar uma crítica em menos de 12 horas, se informou antes sobre Josse De Pauw, o autor, diretor e performer do espetáculo. Descobriu que ele não chamava seu trabalho de uma “peça de teatro”, mas sim de um “concerto teatral”. Começado o espetáculo, entendeu por quê.
Em cena, uma banda com piano, baixo elétrico e bateria atacou um jazz como aqueles que costumava ouvir ao lado do pai, vinte anos antes. Lembrou do velho e pensou com um sorriso de canto de boca: “Esses músicos são bons pra caralho!” Na sequência, viu um senhor corpulento, careca, com uma barba branca comprida, mistura de Xico Sá e Paulo Cesar Pereio, entrar em cena dançando, se entregando ao fluxo da música. Aquele senhor dançou por um longo tempo, até ficar realmente cansado. O procedimento era muito interessante, porque fazia do cansaço uma experiência corpórea real, para além da mera representação. Então, dialogando sempre com o ritmo da banda, que continuaria a tocar ao longo de todo o espetáculo, e tendo sempre em vista a necessidade de construir uma relação inclusiva com o seu público, Josse De Pauw começou a sua narrativa. A mágica do dispositivo, simples mas rascante, estava no fato de que, apesar de falar de experiências aparentemente autobiográficas, o performer usava a terceira pessoa, transformando a sua vida em uma ficção e assim realizando a quimera de converter a própria vida em obra de arte. (No epílogo do espetáculo, aliás, essa ideia era reforçada com a projeção de imagens do corpo nu do artista com interferências gráficas que propunham diversas outras narrativas possíveis para aquele suporte material.) Antes de compreender o fio condutor da narrativa, na qual De Pauw usava a dança como metáfora para falar das três grandes épocas de sua vida (a juventude, na qual ele dançara sem nunca cansar e o tempo parecia infinito; a maturidade, quando as obrigações o tinham levado a parar de dançar; e a velhice em que se encontrava agora, quando, depois de buscar inutilmente pelo silêncio e a solidão característicos da vida de um monge (monk), ele havia finalmente, a despeito de todas as limitações físicas, recuperado o desejo de dançar e cantar como Thelonius Monk), o garoto com terno de crítico foi atravessado por uma estranha sensação de pertencimento: Josse De Pauw não apenas falava holandês, sua segunda língua materna que ele julgava ter esquecido, mas, sobretudo, ao atuar como uma espécie de repentista do cool jazz, transpunha o abismo que sempre o separara da música: a ausência de palavras. Josse De Pauw celebrara diante de seus olhos estupefatos o casamento entre o fluxo musical da vida e a narrativa necessária para transubstanciar sensações brutas em sentidos inteligíveis.
Eu saí então do teatro dançando, com a impressão de estar afinado com o ritmo da vida, me regozijando por não ser mais um estrangeiro neste mundo. Como disse De Pauw: “Nada de demasiada paz, porque ainda há tempo para uma outra vida, se preciso for. Para outra vida, e talvez uma vida melhor, também, mesmo que a anterior já tenha sido boa.” Uma segunda vida, não resta dúvida, fundamentalmente dependente da possibilidade de articular narrativamente os fragmentos dispersos da nossa experiência descontínua do tempo. O que, a meu ver, é não apenas a tarefa da arte, mas sobretudo a da crítica.
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AN OLD MONK
Texto: Josse De Pauw Compositor: Kris Defoort, inspirado em Thelonius Monk Com: Josse de Pauw e Kris Defoort (piano), Lander Gyselink (bateria), Nicolas Thys (baixo eletrônico) Imagens: Bache e Benoît Van Innis Produção: LOD muziektheater e coprodução do Théâtre Vidy-Lausanne