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Se há algo em que a América Latina esbanja são tragédias. Só escolher: submissão cultural aos grandes centros, condenação a abastecer o Primeiro Mundo com commodities, malfeitos do poder público, desigualdades sociais que só encontram comparação no potencial do continente, corrupção em escala industrial (ou, melhor, escala das grandes empreiteiras). No espetáculo A Tragédia Latino-Americana, Felipe Hirsch até denuncia essas mazelas, mas evita platitudes – afirma com muito som e humor, e alguma fúria, que o poder está em quem detém a narrativa, nas mais diversas instâncias.
No início das quatro horas de espetáculo, Hirsch mostra os dentes: seus 11 atores – brasileiros, chilenos e argentinos – encarnam estrelas de uma tal boate Tropicana, e misturam inglês e português para avisar “It’s show time”. E identificam na plateia convidados ilustres como Borba Gato, Maluf, Getúlio e Garrastazu. Mas o panfleto termina aí.
O cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara é composto de grandes blocos de isopor, que se erguem ou pavimentam o palco, numa ameaça constante de ruína, num eterno construir-se e destruir-se. Os fragmentos de isopor que se desprendem depositam-se sobre o palco e evocam a célebre cena do filme Bye Bye Brasil (1979) – parece que neva na América Latina que ocupa o palco do Sesc Consolação.
Hirsch avança em sua proposta de Puzzle (2013), quando partia de textos literários para construir seu texto dramático. Agora, vale-se de Glauco Mattoso (Brasil), Leo Maslíah (Uruguai), Cabrera Infante (Cuba) e Roberto Bolano (Chile), entre outros, para alertar: a narrativa é política, é a chave para um ansiado improvement da Boate Tropicana… Na primeira história, uma menina evangélica incorpora o discurso do namorado e se divide sem culpa entre Iemanjá e a Bíblia. Em outro, a primeira narrativa do Brasil, autoria de Pero Vaz de Caminha, é reescrita para os dias atuais, mas parece que não se passaram mais de 500 anos e seguimos colônia, somente com mais modelos de carros.
Três cenas se destacam. A primeira, em que os atores se revezam no microfone para contar a trajetória de Marilene, começando por seu estupro, depois o aborto, depois o filicídio, a prisão e a morte. Impossível conhecê-la de fato sem multiplicar os narradores, sem levar em conta toda a narrativa de sua vida. A segunda cena mostra um editor ditando uma carta em francês, que é traduzida em tempo real em português e em espanhol, aconselhando um escritor latino a não se emancipar – ele que pinte sua aldeia, como sugeriu Tolstoi, mas usando o pincel da metrópole. Na cena em que um namorado convence a companheira a se prostituir para que ela finalmente atinja um orgasmo, é o homem tentando dominar 100% do discurso erótico da mulher.
Na passagem mais risível, Guilherme Weber encarna um produtor de TV que recruta um cego para estrelar sua atração. A ideia é que este visite lugares exóticos usando camisetas provocadoras. Por exemplo, “100% branco” em um ambiente de negros, “100% agronegócio” num acampamento do MST… Weber rola pelo chão, em gozo pela antecipação do Ibope, imaginando camisetas estampando “100% heterossexual”, “100% Gloria Pires”… Esse é o Brasil que rosna, canta e é feliz: sem nuanças, sem meios-tons, 100% radicalizado.
A montagem pega na veia aberta da América Latina: discurso político não é apenas a fanfarronice de parlamentares e mandatários. Político é todo o discurso, e mais político ainda seu uso, quando distorcido, truncado, fabulado, aparelhado. Para deixar isso claro, até uma epígrafe ganha vida e sobe ao palco para pontuar um conflito que todos sabemos, mas evitamos pensar: derrotada a tirania dos injustos, quem nos livrará da tirania dos justos?
A música segue um dos principais elementos das montagens de Hirsch, com Arthur de Faria na direção musical e arranjos. A cena final de A Tragédia Latino-Americana se inicia com a desesperançada canção Agua Podrida, de Leo Maslíah, quando finalmente todos se unem para, com muito esforço, organizar e empilhar dezenas de blocos sobre o palco, vendo em seguida seu trabalho desmoronar. De novo. Muita água podre vai rolar sob a ponte latino-americana antes de termos posse de nossa narrativa. Talvez por isso, o grand finale é encaminhado com uma brilhante paródia da sentimentaloide Sabor a Mi. A letra de Maslíah não ambiciona pouco: um dia, essa gente bronzeada latino-americana será finalmente “gentil, e não servil”.
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A TRAGÉDIA LATINO-AMERICANA
Projeto: Ultralíricos 5 Direção geral: Felipe Hirsch Elenco de A Tragédia Latino-Americana: Caco Ciocler, Camila Márdila, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Guilherme Weber, Javier Drolas, Julia Lemmertz, Magali Biff, Manuela Martelli, Nataly Rocha, Pedro Wagner Música escrita, arranjada e dirigida por Arthur de Faria Interpretada pela Ultralíricos Arkestra: Arthur de Faria (piano e sintetizadores), Adolfo Almeida Jr. (fagote e efeitos), Mariá Portugal (bateria, percussões e tímpanos), Gustavo Breier (processamentos eletrônicos), Georgette Fadel (trompete), Luccas Bracca (baixo acústico e elétrico), Pedro Sodré (guitarras e overdrives) Autores de A Tragédia Latino-Americana e A Comédia Latino-Americana*: Andres Caicedo (Colômbia), Augusto Monterrosso (Honduras), César Vallejo (Peru), Dôra Limeira (Brasil), Gerardo Arana (México), Glauco Mattoso (Brasil), Guillermo Cabrera Infante (Cuba), Hector Galmés (Uruguai), J.P.Zooey (Argentina), J. R. Wilcock (Argentina), Jaime Saenz (Bolívia), Leo Maslíah (Uruguai), Lima Barreto (Brasil), Marcelo Quintanilha (Brasil), Maria Luísa Bombal (Chile), Pablo Katchadjian (Argentina) Pablo Palacio (Equador), Reinaldo Moraes (Brasil), Roberto Bolano (Chile), Salvador Benesdra (Argentina), Samuel Rawet (Brasil), Teresa Wilms Montt/Teresa de la Cruz (Chile), Virgílio Piñera (Cuba). *Autores selecionados, sujeito a modificações. Direção de arte: Daniela Thomas e Felipe Tassara Iluminação: Beto Bruel Figurinos: Veronica Julian Preparação vocal: Simone Rasslan Coreógrafa e preparação corporal: Renata Melo Codiretora: Isabel Teixeira Traduções: Br