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Sentados, o performer e o acompanhante, um grande asno azul de pelúcia. Olham e esperam pacientemente a acomodação dos espectadores. Logo nada é mais exatamente isso, nenhum dos três. O performer é também a presença do próprio artista, Diogo Liberano; o burrico, Bisonho, da turma do Ursinho Puff; o espectador, a presença cúmplice que justifica o encontro. E deixa de ser assim outra performance ou cena, e tratar por encontro é fundamental. Muda tudo estarmos ali nessa nova condição, pois se refere ao homem sentado com os papéis em mãos e não apenas ao artista. Liberano nos aguarda, e isso é a plena aceitação da nossa presença. Bisonho talvez não se importe, ou nos utilize como uma espécie de cumplicidade para tentar fugir.
A estrutura imposta, pois não cabe outro papel a qualquer um, apenas os descritos, é exatamente o elemento determinante para a cena ser compreendida por performance, como se nomeia, ou performance cênica. O diretor de teatro Renato Cohen, referência maior no entendimento da performance no Brasil, ao construir as primeiras literaturas que trataram das intersecções e particularidades entre performance e teatro, décadas atrás, problematizava a eficiência de ambas as linguagens quando confrontadas. Ao invés do simplório determinismo sobre qual ser o quê, Cohen explorava a dinâmica esquecida por muitos nos vazios deixados em cada limite. Para ele, a ação performática se valida na plenitude do destrinchamento da ambiência cênica, enquanto o teatro amplia a presença subjetiva do espectador ao nível do existir performativo. em tradução por minhas palavras. Em O Narrador, Liberano constrói com eficiência a ambiência e a participação performativa propostas por Cohen. E por novos caminhos. O que configura a performance é a potência com que criação e realidade convivem ao mesmo instante, sem necessitarem de separações. Essa imprecisão, ao ser propositiva, explode a teatralidade presente fazendo da cena um exercício ao encontro.
Bastam poucos minutos para percebermos esse convite. Pensar, então, sua estrutura após o vivido é partir pelo labirinto das compreensões desviadas por sensações a vir. E são fortes, dadas suas intimidades. Cartas, e-mails, poemas, contos e outros instrumentos pelos quais a palavra é suporte de exposição ao intelocutor, são apresentados em forma de leitura. Trazem lembranças e sensações de histórias que se remetem à morte. De alguém. De mais outro. Parente, amiga... Não se trata de abordar a solidão, saudade, culpa, e sim da morte como instrumento do esfacelamento do homem como existir narrativo no mundo. Liberano se apropria, então, das próprias experiências para com elas chegar mais próximo ao reconhecimento da morte da narrativa proposta por Walter Benjamim.
Em O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), o pensador alemão aponta no século XIX o instante em que as instituições higiênicas e sociais provocaram uma alteração definitiva sobre a percepção da morte, tendo como efeito colateral permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Entendeu Benjamin ocorrer aí o instante de extinção da narrativa, pois esta se originaria pela percepção ao homem da vida e morte, início e fim, por sua completude. Ao se deslocar ao desconhecimento do fim, perdeu-se a dimensão linear que configuraria o viver como um estado possível do gesto narrativo, de narração. Mais à frente, utilizou-se da mudez dos combatentes da Primeira Guerra Mundial para chegar ao argumento da extinção do narrar. Já na modernidade, explica, o gesto de contar histórias se esvai, sobretudo com o fim do lado épico da verdade, tendo como maiores exemplos o romance, incapaz de continuar a tradição oral, valendo-se do isolamento do indivíduo, e a informação, por sua necessidade de verificação imediata, cujo valor existe apenas em sua novidade.
De volta a O Narrador de Liberano, temos Walter Benjamin aprisionado em seus próprios argumentos. Somos apresentados, desde o início, à morte como acontecimento final, e as histórias, poemas e cartas lidos pelo artista não buscam escapar dela, acreditando estar na experiência do conhecimento do trajeto o argumento necessário para permanecermos em escuta. Costurando cada parte com aparente aleatoriedade, busca a mais profunda melancolia em forma de lembranças, que propositadamente desmascara no indiscreto uso do texto impresso, portanto planejado. Liberano provoca dessa maneira a recuperação do gesto de contar histórias, sem muito se apressar em justificá-lo. E esse é seu primeiro encontro com as conclusões benjaminianas. Traz os textos microfonados, ainda que esteja muito perto dos espectadores, como se a ampliação da voz servisse para superar a mudez dos soldados do início do século passado. A voz tornada oxigênio à narrativa reconforta o filósofo. Por fim, os dois modernos pontos cruciais: o romance e a informação. Construindo um elaborado jogo simbólico de narrativas que se entrecruzam como experiências de morte, a perspectiva do gesto romanesco se esvai. Não é possível atribuir-lhe a dimensão literária em questão, apenas sopros e ecos da literatura em seus mais diversos estilos. Assim, o romance deixa de ser a força de submissão da narrativa e passa a subsistir no gesto que o domina, invertendo aquilo que poderia destruí-lo. Sobre a informação, nada do que é contado diz respeito ao novo ou imediato. Liberano fala do passado, se apoia em acontecimentos, utiliza-se de lembranças. A urgência diagnosticada por Benjamin, própria da informação, não existe; portanto, a de Liberano, ainda que informativa, reconstrói a narrativa e não o seu fim.
Ao encontrar possibilidades de narrar sem necessariamente confrontar demasiadamente o filósofo, Liberano conquista uma obra singular de imenso apreço intelectual, cuja capacidade criativa se confunde entre conhecimento e potência poética. Sua escrita atinge maturidade em ambos os aspectos e chega a surpreender por tamanhas eficiências. Que Diogo Liberano é um dos jovens artistas mais interessantes, já sabíamos. Contudo, em O Narrador de fato se supera e aponta à presença de um artista único e especial na dramaturgia brasileira atual.
Dizer, porém, ser tudo obra de Liberano é ignorar a rica parceria em cena. Bisonho, o bicho-de-pelúcia, sentado ao seu lado, observa-nos todo o tempo e, como nós, apenas ouve. Em uma primeira leitura, parece permanecer catatônico, tal qual os combatentes, e pouco saberemos sobre seu reconhecimento da morte como um fim narrativo ao homem. É como se substituísse Walter Benjamin, quem verdadeiramente deveria estar ali junto ao artista, sem qualquer sentido pejorativo por sua animalidade. Bisonho é conhecido nos desenhos por seu mau-humor e sua insistência no pior. Mas, em O Narrador, ao convivermos com sua presença, provoca o entendimento de ser um devaneio ao universo poético, e de seu silêncio não ser provocado pela falta de ação, e sim pelo acúmulo de consciência ao estado narrativo que a morte impõe ao ser. Bisonho espera sua morte com a consciência de que não virá, afinal é quem é. A narrativa em seu estado infinito de presença ao ser, dada a ausência de sentido último. O boneco, então, é quem confere real confrontamento a Benjamin por não reconhecer o ponto final e ainda carregar a consciência narrativa em toda sua plenitude.
Ao somar as saídas encontradas por Liberano à contraprova aos argumentos do filósofo pela pelúcia, O Narrador supera a necessidade de defender ou condenar e passa a conviver com as premissas sem qualquer dilema ou paradoxo. Na interpretação direcionada que o próprio título propõe, expandem-se os pensamentos originais à complexidade contemporânea não prevista por Benjamin. O deslocamento argumentativo faz sobrar ao espectador a condição de pertencente a outro encontro, o ocorrido entre o pensador e Liberano.
Curiosamente, Renato Cohen discutia exatamente a importância do estado intelectual do artista como interface produtiva ao confrontamento ideológico dos teóricos, sendo ele mesmo um tanto de cada. Recordo-me das nossas conversas, em que falara sobre o pensamento ser um processo de hiperlink ao conhecimento inconsciente, e que deveríamos estudar o hiperlink na construção da dramaturgia, ou seja, dos encontros entre conhecimentos e subjetividades, para que o teatro se valesse de sua perspectiva performativa. Infelizmente, o diretor morreu aos quarenta anos de infarto e não tivemos tempos para isso. E de lá pra cá, a interface virtual se tornou real e acessível, algo quase inimaginável décadas atrás. Infelizmente, Walter Benjamin se suicidou em 1940 com uma overdose de morfina e não teve tempo de investigar seu olhar melancólico, que tanto influenciou sua leitura sobre a morte do gesto de contar, da narração, em um tempo em que saídas, ainda que igualmente melancólicas, são descobertas exatamente pela busca no conviver e recuperar a presença da morte.
O tempo proustiano trazido às histórias de Liberano não por acaso desenham esse estado melancólico do filósofo que primeiro traduziu ao alemão o amigo. Contudo, ainda assim, a madeleine não está mais junto a xícara de chá, pelo qual o personagem de Proust, em Em Busca do Tempo Perdido, se dissolve pelo interior das lembranças. O doce está entre a fala calma e emocionada de Liberano e o olhar triste e cúmplice de Bisonho, que nos atingem com igual precisão. Está no silêncio que toma a todos ao final da cena, quando o encontro é interrompido como se morrêssemos juntos, ali. Em O Narrador, Diogo Liberano nos provoca a tentar narrar nossos silêncios. E, ao não conseguirmos lidar conosco, em nossos estados mais sinceros e profundos, compreendemos o quanto a morte faz parte e existe em nós. Sem dúvida, uma das experiências poéticas mais fundamentais ocorridas nos palcos brasileiros desse 2015 que acaba de chegar ao fim, ainda que estranhamente se estenda pelos interiores do novo ano. Ou, simplesmente, de um ano que nasceu torto, continua assim e insiste em não morrer.
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O NARRADOR
A partir do ensaio O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin
Dramaturgia e Performance: Diogo Liberano
Composição musical: Angel, de Rodrigo Marçal
Colaborações artísticas: Adassa Martins, Caroline Helena, Flávia Naves, João Pedro Madureira e Natássia Velio
Registro fotográfico: Anna Clara Carvalho (RJ) e Betânia Dutra (SP)
Foto que ilustra essa crítica: Anna Clara Carvalho
Registro audiovisual: Phelippe Baptiste
Assessoria de imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Produção: Clarissa Menezes e Thiago Pimentel
Realização: Teatro Inominável
Duração: 60 minutos