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“Se eu fosse escritor e estivesse morto, gostaria muito que minha vida fosse reduzida, graças aos cuidados de um biógrafo amistoso e desenvolto, a alguns detalhes, alguns gostos, algumas inflexões, digamos biografemas, cuja distinção e mobilidade pudessem viajar para além de qualquer destino e chegar a tocar, à maneira de átomos epicuristas, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão...”. Roland Barthes
“Se eu fosse escritor e estivesse morto, gostaria muito que minha vida fosse reduzida, graças aos cuidados de um biógrafo amistoso e desenvolto, a alguns detalhes, alguns gostos, algumas inflexões, digamos biografemas, cuja distinção e mobilidade pudessem viajar para além de qualquer destino e chegar a tocar, à maneira de átomos epicuristas, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão...”.
Roland Barthes
“É preciso cultivar nosso jardim”, escreveu Voltaire nas linhas finais de Cândido, ou o otimismo. O desfecho enigmático desse conto filosófico, a despeito das inúmeras interpretações que recebeu ao longo dos séculos, aponta para uma sabedoria simples, mas que costuma ser negligenciada: a de que toda verdadeira cultura vem do cultivo, do cuidado, do convívio com o outro, esteja ele presente diante de nós, esteja ele encadernado em um livro, esteja ele sepultado em algum lugar e dependa de nossa memória para continuar a existir. Não pode haver cultura onde não há amor, não pode haver sabedoria onde não há sabor, não pode haver vida onde não há a possibilidade de recordar e transmitir nossas experiências mais significativas.
Essa convicção parece ter sido o ponto de partida do espetáculo Interior, encenado pelo grupo Bagaceira, do Ceará, em sua recente ocupação do Teatro III do CCBB no Rio de Janeiro, onde o grupo apresentaria ainda duas outras peças de seu repertório: A mão na face e Fishman, todas com direção de Yuri Yamamoto e texto de Rafael Martins. Embora seja tentador falar das três peças em conjunto, minha opção neste breve ensaio será a de considerar apenas Interior, trabalho no qual a poética do grupo encontrou a sua expressão mais concentrada.
Ao entrar no teatro, o espectador é imediatamente convidado a estabelecer uma relação de intimidade não apenas com a cena, mas com os outros espectadores. Em vez de cadeiras dispostas lado a lado, que privilegiam unicamente a relação da plateia com o palco, deixando cada espectador cego para seus próprios vizinhos, o Bagaceira optou por duas arquibancadas de cinco degraus, colocadas frente a frente e separadas por uma estreita passarela de menos de um metro de largura. No alto, unindo ambas as arquibancadas, fios luminosos e bandeirolas de festa configuram um espaço a ser habitado, compartilhado com alegria. Ao longo das arquibancadas, pequenos jardins portáteis trazem à lembrança as palavras de Voltaire. Antes ainda de as atrizes entrarem em cena, os espectadores têm o tempo de perceberem-se uns aos outros, contemplarem-se, estabelecendo algum nível de cumplicidade.
Essa cumplicidade é amplificada pela entrada em cena da primeira atriz (Tatiana Amorim), que, caminhando encurvada com a dificuldade típica das centenárias e trajando uma máscara que evoca as rugas da velhice mais profunda, assume seu lugar em uma das arquibancadas. Como nós espectadores, ela não está ali só para falar, mas também par ouvir; não apenas para ser vista, mas também para ver. Além do tom de máxima intimidade que confere a suas palavras iniciais, o fato de presentear o público com fatias de um bolo que ela própria teria preparado faz com que a plateia se sinta acolhida, aconchegada, como se estivesse na casa da própria avó.
Entra então em cena a segunda atriz (Samya de Lavor), com indumentária e um caminhar provecto semelhantes ao da primeira. Ela traz, no entanto, um rádio de pilha, índice de sua “modernidade”. Por meio de suas palavras, os espectadores são introduzidos na trama da peça: a anciã “mais moderna”, depois de oferecer novos pedaços de bolo a seus ouvintes, diz ter 97 anos e ser neta da outra. Conta então como sua avó se recusa a morrer, arranjando sempre mil estratagemas para escapar do túmulo, para manter-se viva e poder seguir cuidando de seu jardim. O diálogo entre ambas, familiar e jocoso, é pura poesia. Enquanto a neta fala na necessidade de descansar, de aceitar o fim, a avó afirma que “cadáver é quem não protesta”, quem não resiste, quem permanece passivo diante dos desmandos do destino e do poder constituído. Em suma: quem não faz a sua história. Para além dessa bela definição da vida como resistência a qualquer forma de opressão – “para morrer basta estar vivo, para viver não” –, a ideia de que a nossa identidade é tecida pelo nosso entorno e por nossos antepassados – “Eu sou eu e minha circunstância”, na formulação concisa de Ortega y Gasset – também aparece concretamente na forma como a neta herda a receita do bolo e o gesto da avó de compartilhá-lo.
Assim, o título da peça ganha um outro sentido: para além da exterioridade de um modo interiorano de vida, presente no cenário, na indumentária, na prosódia e no modo acolhedor com que ambas as senhoras se relacionam com seus “vizinhos”, Interior é um ensaio sobre aquilo de que somos feitos. E neste ensaio, cheio de ressonâncias platônicas, é feita a sugestão de que “conhecer(-se) é lembrar”.
Começa então a parte mais lírica do espetáculo, quando as duas anciãs, depois de terem construído o ambiente propício para tal (acolhedor, brincalhão, imune à opressão produzida por teatros interativos que apostam mais na violência do que na delicadeza), pedem que os próprios espectadores escrevam os nomes de suas avós e o local onde elas teriam nascido em um pedaço de papel que deveriam em seguida colocar em uma caixinha que passa de mão em mão. Ao fim desse ritual, a anciã mais jovem começa a tirar dessa caixinha alguns desses papéis, pedindo na sequência que os netos das avós evocadas contem alguma lembrança de suas avós, algo que teriam aprendido com elas. A experiência de recordar nossas próprias avós teve um efeito poderoso no dia em que fui assistir ao espetáculo: uma menina chorou tanto ao ouvir o nome da própria avó que precisou de muitos minutos até se sentir apta a compartilhar suas lembranças; um jovem espectador confessou ter se tornado artista por causa da avó e em seguida cantou uma ópera que ela lhe ensinara. Outros depoimentos se sucederam, propiciando uma catarse coletiva difícil de descrever, mas muito tocante de experimentar. Para coroar a série de depoimentos, as duas senhoras se endereçaram diretamente às avós presentes na plateia, algumas na casa dos 90 anos, e foi uma beleza ouvir essas vozes quase evanescentes. Finalmente, foi proposta a questão que cada espectador levaria consigo: “o que você gostaria de estar fazendo daqui a 50 anos?”.
A vida é breve, a memória não. Enquanto formos capazes de lembrar e de ser lembrados, a vida ainda pulsa. Contra a aceleração e o esquecimento quase imediato que marcam a “cultura mercantil” (contradição em termos!) de um tempo pouco propício à construção e à transmissão das experiências que importam, aquelas que dependem de um cultivo assíduo e demorado, Interior afirma-se como peça de resistência, ensinando que a violência não é a única e talvez nem mesmo a mais eficaz forma de protesto.
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INTERIOR
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Assistência de direção: Rafael Martins
Elenco: Samya de Lavor e Tatiana Amorim
Atores contrarregras: Rafael Martins e Rogério Mesquita
Interlocução artística: Georgette Fadel e Maurice Durozier
Cenário e figurinos e iluminação: Yuri Yamamoto
Técnica: Yuri Yamamoto
Diretor de montagem: Ciel Carvalho
Cenotécnico: Josué Rodrigues
Preparação vocal: Luis Carlos Prata
Confecção de figurinos: Fátima Matos
Fotos: Caique Cunha
Produção: Rogério Mesquita
Produção executiva: Mikaelly Damasceno