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Não cabe mais ao teatro a mera replicação de ideias e fórmulas consagradas, se é que um dia já o coube, por ser um tanto improdutiva a realização de espetáculos, a partir de textos clássicos e grandes autores, se mantidos fieis aos interesses originais. Pode parecer absurdo reescrever ou adaptar uma obra, mas é no provocar da aproximação ao contemporâneo, ao agora, que os textos e dramaturgos podem ser confirmados relevantes. Shakespeare desenhou passo a passo o homem moderno ocidental, suas idiossincrasias e interesses, para além dos apontados pela Idade Média e pelo Renascimento. Foi, ao seu modo, transgressor e visionário. No entanto, apenas remontar o autor inglês, como meio de dar voz aos seus pensamentos, ainda que geniais, quase sempre acaba por fazer de seu texto um discurso anacrônico exatamente sobre o homem que nos apresentara. O tempo correu séculos, e as relações sociais e políticas ganharam novas complexidades ao que se tornou esse mesmo homem. Assim, montar uma de suas peças exige não apenas boas ideias, o que pode conduzir a ótimos produtos e a entretenimento, é verdade, mas, e principalmente, a intervenção ao modo de percepção do homem, sociedade e valores a partir do como cada um deles se reinventou até aqui.
Essa tem sido a proposição de Roberto Alvim e do Club Noir, revigorar a potência discursiva de autores clássicos, apropriando-se de suas percepções para atualizá-las frente às subjetividades que permeiam esse outro existir. Suas montagens, por conseguinte, validam a importância dos textos e autores ao tempo, dando-lhe novos respiro, e muitas vezes trazendo-lhes saltos inesperados, enquanto mapeiam o contemporâneo naquilo ainda existente de mais desconhecido, o próprio homem. Seus espetáculos obrigam a convivência radical entre história, ideia e poética. E qualquer avaliação que busque dialogar com seu trabalho necessita mergulhar simultaneamente nesses três aspectos de sua criação. Não é diferente agora, em sua montagem de Caesar, a partir do texto Julius Caesar, de Shakespeare, no qual sintetiza o texto original ao que reconhece essencial às novas urgências discursivas; enquanto, paralelamente, provoca o deslocamento do espectador a outros paradigmas, por mecanismos estéticos extremamente elaborados e de intensa provocação cognitiva.
A história em Caesar não é limitada à revisão do roteiro de cenas ou à sustentação da linearidade da narrativa originais. Ao escolher recriar o percurso contado na versão inglesa, Alvim ressignifica a narrativa shakespeariana, que passa a servir de material simbólico para sua própria criação, e não apenas como outra história passível de encenação. No tratar os personagens como arquétipos de determinados aspectos do homem contemporâneo, a fábula ganha espaço para ser expandida a outros tempos, outras compreensões, outros discursos. Mantém os valores basilares propostos por Shakespeare, todavia sem a intenção de defender a poética estilística de sua linguagem. Esse distanciamento se confirma essencial para se propor pelo espetáculo mais do que somente um experimento, e alcança, como o faz, dimensões de obra independente e, em bons instantes, inédita.
Alvim, trabalhando apenas com dois atores, Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia, que se intercalam entre os diversos personagens da trama original, esfacela a perspectiva humanista prevista por Shakespeare, provocando igual falência à ideia de sujeito. Sem a individualidade dos personagens, não é possível mais reconhecer o individuo qual apontariam. Por conseguinte, recusa-se a perspectiva do homem ser a representação de uma única dimensão sociopolítica e cultural. Os dois atores servem à multiplicidade permeável reconhecida nas possibilidades de construção de identidades outras e não tão definitivas, entendendo o plural como anulação do sujeito e ampliação da própria e inescapável condição desse novo humano.
Ao somar ambos os aspectos - reconfiguração simbólica da narrativa em narratividade e destituição do sujeito para uma identidade múltipla irrepresentável de homem –, Caesar conquista os argumentos para definitivamente atualizar a peça e trazê-la a nós. Assim, os acontecimentos recentes da nossa condição política e social estão não só citados indiretamente sob a estrutura, configuram eles parte intrínseca e inseparável da constituição do discurso em sua dimensão poética de teatralidade.
A dificuldade empregada aos atores, portanto, é imensa. Como dar conta de representar personagens sem trazer ao corpo a figuração daquele que discursa, já que são, sobretudo, amplitudes verbais promovidos por não-sujeitos? Como ser alguém não o sendo? A resposta prática a essa questão surge em muitos momentos, quando Caco e Carmo conquistam pelo dizer, e não pelo corpo, os aspectos mais poéticos da dramaturgia de Alvim. O dilema está na necessidade das interpretações, quando se faz necessário construí-las demasiadamente físicas. A sugestão de personagens mais claros, específicos, reaproxima a ideia de indivíduos, distanciando-se da potência proposta de desconstrução do sujeito. Em um trabalho onde os atores se colocam como vozes distintas, o corpo revela-se obrigatório, confusão inevitável, portanto. Caco Ciocler parece mesmo mais à vontade em cena, evidenciando o surgimento de um domínio da linguagem de Alvim, conquistado pela parceria em diversos espetáculos do diretor. A provocação dessa outra estrutura do ator no espetáculo exige o convívio, revela-se. Assim como inevitavelmente em qualquer teatro que verdadeiramente se proponha experimental. Experimentar-se, então, é o caminho ao desenho desse humano destituído dos valores consequente à ideia de sujeito.
Contudo, não se trata de ser melhor ou mais eficiente, visto que isso limitaria o entendimento dos atores como presenças no espetáculo. É preciso compreender que o humano ressignificado por Alvim só se valida exatamente pela presença do ator como suporte ao teatro, e não do teatro como o abrigo aos atores. Desse modo, ainda que a proposta possa parecer assustadora ao público tradicional de teatro, quanto mais o ator se confirmar essência da cena, mais se aprofunda a perspectiva humana do que é dito. E é curioso perceber no procedimento, aparentemente tão limitado a seus artifícios, ainda tanta sobrevida para outras e mais radicais investigações como mecanismo para repensar o teatro.
Em Caesar, Alvim amplia sua construção poética introduzindo a música como ambiência narrativa, tanto quanto a palavra é em seus trabalhos. A composição original de Vladimir Safatle conquista a representação de estados e territórios. Entenda-se por estados tudo aquilo que, impossível de ser representado pelo corpo do ator, é necessário para compreender uma presença em contexto. Um personagem é um tanto ele mesmo, a soma de seu tempo pelo reflexo de outros, e a realização do meio sobre si, em suas interferências e imposições. Esse foi o maior acerto de Shakespeare, desde sempre, compreender o meio e o homem como um acúmulo amorfo de consequências. E também o do espetáculo. Caesar troca a ideia de ambiente para ambiência, destituindo o territorialismo narrativo do Império Romano e determinando à narrativa a subjetividade inacessível aos acontecimentos históricos. A música, ao ser tornada ambiência, amplia nossa sensação de localização dos sentimentos e emoções, deixando ainda mais livre a poética o recurso estético da palavra, que não mais precisa ser afirmativa e informativa. O que muda radicalmente a percepção, quando se fala em arte, pois faz a experiência do espectador ser um movimento singular de investigação sobre si mesmo.
A execução delicada do piano por Mariana Carvalho, substituindo Safatle, durante o 22º Porto Alegre Em Cena, ofereceu uma ambiência mais sublime ao espetáculo, como se a cena estivesse incansavelmente em território poético e não mais narrativo. Seu diálogo com os atores e textos superou a condição sonora e passou a oferece-lhes estruturas de acessos aos desenhos mais íntimos e indizíveis.
Foi Richard Rorty quem decifrou que o melhor ao homem são as singularidades do olhar sobre o homem e o meio provocados pelos artistas que, desafiando-nos com possibilidades criativas, ao invés das reivindicações de conhecimentos consagrados, ao observarem e traduzirem a realidade por ângulos não cristalizados, determinarão às experiências artísticas a capacidade para irmos além da obviedade dos discursos políticos comuns. Para o filósofo americano, o conhecimento transferido ao outro se dá na manifestação de vocabulários e na necessidade de nos colocarmos à disposição, para compreendermos os vocabulários empregados. Está na arte, sobretudo, e não na filosofia, o que denominou por vocabulário final, cuja capacidade de informação traz a realidade sem tradução, mas exposta por novos contextos de observação, pelo qual a percepção falsa de nossa identidade e inclusão comunitária trarão ao material poético o valor crítico de observação do todo e de si.
A pesquisa de Alvim confirma a reflexão de Rorty ao instituir um vocabulário estético particular de construção de poéticas singulares, e em Caesar também no uso da música para além dos recursos melodramáticos do teatro tradicional. Um espetáculo denso, complexo, radical, onde a atualidade atravessa a narrativa sem nenhuma perspectiva de ilustrar o contemporâneo e paradoxalmente o revelando de maneira crua e violenta. A palavra escrita de Alvim alcança maturidade no uso dos recursos miméticos e simbólicos, mesmo quando comparado o seu texto ao original. Poetas próprios de seus tempos, Shakespeare utilizou atualizações de histórias medievais, quase sempre, para construir o homem moderno; agora, Alvim faz o mesmo com Shakespeare, para desconstruir a modernidade do homem de outrora e fincá-lo definitivamente ao contemporâneo, tanto em sua condição de pertencimento à história, quanto como representação política de ideias e, principalmente, presença poética.
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CAESAR – COMO CONSTRUIR UM IMPÉRIO
Adaptação e Direção: Roberto Alvim
Texto: William Shakespeare
Elenco: Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia
Composição da trilha sonora original: Vladimir Safatle
Execução ao vivo da trilha sonora original: Mariana Carvalho
Assistência de direção: Juliana Galdino
Cenografia e iluminação: Roberto Alvim
Figurino: João Pimenta
Projeto gráfico: Felipe Uchôa
Fotos e vídeos: Carmo Dalla Vechia, Laerte Késsimos e Leekyung Kim
Direção técnica e operação: Vinícius Tardelli
Cenotecnia: Diego Dac e Saulo Santos
Adereços: Rodrigo Ferraz
Coordenação de palco: José Renato Forner
Visagismo: Alex (Salão Pierà)
Produção: Gelatina Cultural
Direção de produção: Ricardo Grasson e Cicero de Andrade
Assistência de produção: Vivian Vineyard, Felipe Costa e Yve Souza
Assessoria de imprensa: Frederico de Paula (Nossa Senhora da Pauta)
Fotos: Leekyung Kim
Realização: Club Noir
Duração: 60min
Recomendação etária: 16 anos