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Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado
Na correria do cotidiano, marcado pelo timing do rolamento do feed das redes sociais e da profusão de mensagens instantâneas em nossos dispositivos eletrônicos que geram um (falso) senso de urgência para tudo, sentar na poltrona do teatro para contemplar a experiência do espetáculo Habite-me é um ponto fora da curva, um momento de reflexão sobre outros ritmos possíveis a partir dos quais cada um de nós, espectadores, poderia está vivendo suas particulares e curtas (diga-se de passagens) existências. Dentro destas poucas linhas, tento traduzir esse sentimento, ao mesmo tempo em que me esforço em apresentar um pouco desta obra. É um esforço, porque a experiência de Habite-me pode ser algo tão pessoal e subjetiva, atinge os espectadores de formas tão únicas, que esta crítica será em larga medida um ponto de vista da minha própria experiência como espectador.
Ritmo e pulsação. Respiração e imaginação. Fluidez e desdobramentos de possíveis de si.
Estes binômios poderiam resumir a experiência teatral que se desenrola ao longo dos cerca de 50 minutos da peça, em que a atriz marionetista Carolina Garcia Marques generosamente cede seu corpo para ser habitado pelo inanimado e se permite ser habitado por este. Com dramaturgia e direção de Paulo Balardim, a montagem foi o resultado de um processo de pesquisa em residência artística e coprodução dos artistas brasileiros da Cia 4 Produções e dos artistas canadenses do Territoire 80 [1], em regime de muitas colaborações que tecem a trama da obra: na composição da trilha, da cenografia, na criação dos bonecos e máscaras, na partitura corporal, etc.
O espetáculo é composto basicamente por três quadros, costurados pela atuação da atriz e o ambiente fluido da cenografia: no primeiro quadro, O Enamorado, acompanhamos o relacionamento de um casal de idosos no final de sua jornada terrena juntos, refletindo sobre a brevidade da vida e do quanto o nosso tempo compartilhado aqui é efêmero. No segundo, O Eterno Retorno, morte e vida se abraçam e dançam uma coreografia que nos enche de perplexidade, seja pela pela técnica de manipulação que dá ao boneco uma poderosa autonomia, confundindo o olhar do espectador sobre quem afinal manipula quem, seja pelo impacto visual que nos provoca a pensar que a Morte nos espera para a dança logo aí. O quadro O Inocente finaliza a posta em cena com um maternar sobre a vida, a possibilidade do novo, essa criança, feita de pedaços de possibilidades, que nos convida para brincar com as promessas do futuro, e também nos assusta pelas dúvidas e o medo que este novo sempre gera. Definitivamente, esta cena não é (só) sobre ser mãe.
Com exceção de um poema recitado em voz off na abertura, um fragmento de Elegia 1 de Rainer Maria Rilke, escuta essencial para melhor adentramento nos sentidos da peça, o espetáculo se desenvolve pontuado pela trilha sonora envolvente produzida pelo Tuur Florizoone e as estruturas cenográficas infláveis propostas por Elcio Rossini que respiram junto com a atriz, os personagens e o público. Combinados com a luz, um mundo nasce, se desenvolve e se espalha pelo palco, criando um ambiente maleável, fluído e onírico. Vai se tecendo um estranho ecossistema cênico e visual diante do público. Tudo pulsa e sorve ar em Habite-me.
Dentre as tantas camadas de sensações que o espetáculo desperta, merece destaque a relação estabelecida entre a marionetista e os inanimados com os quais ela se relaciona em cena, compostos por máscaras, bonecos e figurinos. Aqui é um recorte intencional para análise, uma vez que, a grosso modo, os demais elementos da obra, como cenografia e luz poderiam entrar nesse rol de relacionamentos entre o corpo real da atriz e os diversos corpos ficcionais que compartilham este “tempo fora do tempo” que é Habite-me. Percebemos na obra a presença dos acúmulos de pesquisa criativa realizados pela atriz Carolina Garcia Marques e o diretor e dramaturgo Paulo Balardim em parcerias anteriores, como em A Tecelã (2010) e Ensaio sobre o Tempo (2014) realizados quando integrantes da companhia Caixa do Elefante. No entanto, em Habite-me fica a impressão de um passagem dos recursos visuais e truques ilusionistas que marcaram aqueles trabalhos para a busca por uma relação de profunda integração entre os corpos em cena, onde a experiência avança das acuradas técnicas de manipulação para a constituição de um “corpo marionético pleno”, uma utopia em que as fronteiras entre animado e inanimado se rompem e a ideia de manipulação cede lugar para uma genuína relação com a matéria, que se traduz em peles, faces, ossos e fibras dos/nos inanimados.
O que contemplamos em Habite-me é uma virada no jogo tradicionalmente presente no teatro de animação, em que Carolina Garcia Marques coloca seu próprio corpo a serviço da matéria, de ser misturada, fundida, acoplada e habitada por esta, naquilo que contemporaneamente podemos chamar de uma busca por “estados marionéticos”, uma situação em que as fronteiras entre o animado e o inanimado são diluídas, confundidas, onde o “corpo de carne revela o corpo desencarnado”, nas palavras da diretora e cenógrafa da Cia. Pupella-Noguès e professora na Universidade de Toulouse - Jean Jaurès, a francesa Joëlle Noguès: Com o marionetista dentro da marionete, iniciamos um diálogo entre presença e ausência. O imaterial e o material interagem com uma ação de dependência. Estes restos tornam-se a extensão da vida através do artifício. Não há mais referências ao corpo do ator, ele está completamente escondido pela matéria, absorvido por ela. Este novo corpo transfigurado revela uma presença enigmática em que corpo humano e corpo objeto se confundem. O corpo do marionetista revela o corpo vivo da marionete. O corpo de carne revela o corpo desencarnado: um corpo a corpo objeto e marionetista, diante de um binômio material/imaterial [2]
Este jogo, que resulta em sensações de complementariedade e fusão entre estes corpos, coloca em questionamento qualquer visão romântica do boneco como mero objeto inanimado entregue à vontade do animador [3]. Como observado, sentido e atravessado pela cena da “dança da morte” em Habite-me, um dos pontos altos do espetáculo, bonecos e máscaras estão totais em cena. Vida, morte, rugas e dobras, fibras e fios, de boneco e de atriz .
Tive a oportunidade de assistir o espetáculo em três ocasiões muito distintas, em 2019, na programação do 3º Pro-vocação, realizado pela UDESC e a UNIMA Internacional; em 2021, no Festival de Teatro Virtual da Funarte e em 2024, no Festival Movimenta Cena Sul, no Teatro Oficina Olga Reverbel. Cada possibilidade de assisti-lo é essencialmente nova, uma vez que o espetáculo, por refletir temas metafísicos e atemporais, tem o poder de se conectar ao momento e seguir suscitando inquietações em cada espectador. Por esta razão, não tenho a experiência de “Habite-me” como coletiva, mesmo compartilhando a plateia com cerca de 50 espectadores, ou por um público indeterminado e anônimo na experiência online. É, para cada espectador, algo muito singular e pessoal.
Habite-me nos lembra que em breve, muito em breve mesmo, não estaremos mais aqui. E nos instiga a refletir sobre como podemos fazer de nossa jornada curta e pessoal mais plena de sentido, o que indubitavelmente inclui nossos outros e outras: como melhor partilhar nossa saga pessoal ao lado de quem amamos, como estabelecer relações mais empáticas e humanas na complexidade da sociedade global-conectada e ambiguamente marcada por isolamento e solidão, sobre como acolher o novo e as oportunidades nascentes apesar das contrapartidas do medo e da dúvida por ele requeridas. É o modo como vamos responder a estas questões no presente que, acredito, pautará o ritmo e o som, o passo e o compasso com a Inevitável Senhora que nos espreita em algum momento para a dança final.
[1] https://territoire80.ca/en/home/
[2] NOGUÈS, Joëlle. Transfiguração dos corpos. Os corpos pensantes. In: MÓIN-MOIN: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do Sul: SCAR/ UDESC, ano 13, v. 17, p. 15-29, 2017.
[3] SILVA, Leandro Alves da. TEATRO DE ANIMAÇÃO E TECNOLOGIAS: Um olhar a partir da Interface sobre o trabalho de algumas companhias do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado) – UFRGS, 2019.
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Atuação e pesquisa: Carolina Garcia Marques
Direção e Dramaturgia: Paulo Balardim
Bonecos e máscaras: Emilie Racine
Trilha Sonora original: Tuur Florizoone
Cenografia: Elcio Rossini
Figurinos: Cris Lisot
Criação de luz: Renato Machado
Operação de luz: Luana Pasquimel
Operação de som e cenário: Wilson Neto
Preparação corporal: Márcia Pinheiro e Laurence Castonguay
Operação de dispositivos cênicos (infláveis): Paulo Balardim
Realização: Cia 4 Produções e Cie Territoire 80 (Montreal)
Produção Executiva: Líria Cultural - Lydia Arruda
Apoio: Espaço de Residência Artística Vale Arvoredo (Brasil), Programme Pilote de Residence Croisée de Recherche et de Création pour Marionnettistes Professionels del I'Île de Montreal, Festival Casteliers (Canadá)