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Esse texto faz parte do Projeto Arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado
Um desejo tem gênero? Cor? Nacionalidade? Existem desejos que valem mais do que os outros? Quem define isso? Fiquei com alguns desses questionamentos martelando meus pensamentos assim que saí da sessão de A Mulher que Queria Ser Micheliny Verunschk, espetáculo da Cia. Stravaganza que estreou em dezembro de 2023.
Baseado no livro homônimo de Wilson Freire, o espetáculo dirigido por Adriane Mottola, e interpretado por Sandra Possani, que veste a personagem como uma luva, conta a história de uma mulher cuja trajetória, marcada pela dor, encontra alívio no desejo de tornar-se escritora. Talvez alívio não seja a palavra certa pois, ao longo da narrativa, vamos percebendo o efeito cruel que um desejo negado de tornar-se realidade, pode ter sobre a vida de uma pessoa. E, na trajetória dessa mulher extremamente marginalizada, barreiras para esse desejo são muitas.
Ao contrário do que possa parecer, essas barreiras não diminuem o sonho dela. Ao contrário, aumentam. Ele vai se tornando tão grande que as palavras já não cabem nela. Explodem pelo espaço cênico inteiro e expandem o universo narrativo da personagem. Logo, ela, que ocupa o espaço extremamente reduzido reservado a uma mulher prostituída numa zona portuária qualquer, vê suas palavras escorrerem pelas telas, pelo chão, arrastadas pelas mesmas ondas que trazem e levam embora os homens que cruzam seu caminho e que são suas únicas ligações com o mundo de fora desse seu pequeno universo.
Aliás, é no traçado desse universo narrativo que o espetáculo têm uma de suas maiores virtudes. A personagem está situada na margem da margem. Está nas bordas do mundo. Seu universo é ao mesmo tempo limitado, pois reflete as poucas possibilidades de mobilidade social reservadas a uma mulher prostituída nesse ambiente masculino em que ela ocupa um papel claro: servir aos desejos dos homens que por ali transitam. E, ao mesmo tempo, é amplo, pois o contato com esses homens de vários lugares diferentes alimentam a personagem com repertórios que só ela poderia ter.
E a personagem sabe disso. Ela sabe da grandeza de seus pensamentos, de suas narrativas. E é aí que mora seu sofrimento já que ela sabe também que nasceu no lugar errado, com o nome errado. Vozes como a sua são temas de estudos sociais, são personagens ricos na literatura, mas são negadas quando ocupam um lugar ativo, quando decidem contar sem intermédio, suas histórias.
Na geopolítica desses desejos mediados por processos colonizatórios, os desejos são moldados e classificados de acordo com gênero, cor e classe social. Isso cria uma hierarquia onde os desejos não são iguais, mas sim profundamente marcados por desigualdades estruturais. Nesse cenário, surgem dois papéis quase intransigentes: aqueles que têm o poder e os recursos para realizar seus desejos e, por conseguinte, consolidar sua posição de privilégio, e aqueles que, apesar de nutrirem desejos semelhantes, permanecem impossibilitados de concretizá-los devido a barreiras estruturais e socioeconômicas.
Essa dinâmica se inscreve na lógica do capitalismo selvagem, que celebra e incentiva o desejo como um motor da economia. O desejo, portanto, é constantemente estimulado e explorado para gerar consumo e crescimento econômico. Contudo, nem todos os desejos são igualmente realizáveis. Os que estão em posições desfavorecidas são induzidos a manter seus sonhos vivos e a alimentar o sistema econômico que perpetua essas desigualdades. Esse ciclo mantém a ordem vigente, onde a frustração e a expectativa não realizadas de muitos sustentam a dinâmica de consumo e lucro de poucos, garantindo a continuidade do capitalismo e a persistência das disparidades sociais.
Ao propor essas reflexões, a peça se destaca por sua habilidade em entrelaçar a narrativa pessoal com questões globais, explorando como aspirações individuais estão profundamente imbricadas em contextos geopolíticos mais amplos. Sem didatismo ou mera política panfletária, a Cia. Stravaganza oferece um espetáculo capaz de provocar reflexões importantes de forma sensível. A mulher só queria ser Micheliny Verunschk, mas conseguiu muito mais do que isso.
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Atriz: Sandra Possani
Diretora: Adriane Mottola
Texto: Wilson Freire
Dramaturgistas: Fernando Kike Barbosa / Adriane Mottola / Angela Spiazzi / Sandra Possani
Diretora de Movimento e Assistente de Direção: Angela Spiazzi
Cenografia: Rodrigo Shalako
Figurino: Liane Venturella
Iluminação e Videografia: Ricardo Vivian
Cena Sonora: Álvaro Rosacosta
Música: El Tiempo Teje Historias (Álvaro Rosacosta) / Arranjo, Violões E Charango: Beto Chedid / Voz: Simone Rasslan / Edição E Percussão: Álvaro Rosacosta
Maquiagem: Miriã Possani
Designer Identidade Visual: Pingo Alabarce
Assessor de Imprensa: Lauro Ramalho
Redes Sociais: Duda Cardoso
Fotos: Vilmar Carvalho
Projeto: Amora Produções Culturais / Adriane Mottola / Sandra Possani
Produção: Duda Cardoso / Adriane Mottola
Realização: Cia Stravaganza