*Atenção: o arquivo deve ter no máximo 500kb.
*Nome que será exibido na barra de endereços. Não deve conter espaços ou acentos. Ex.: www.agoracriticateatral.com.br/criticas/nome-da-critica.Caso não seja preenchido, será gerado automaticamente com base no título.
A primeira vez que entrei em contato com a obra do escritor gaúcho Jeferson Tenório, o Brasil estava imerso em um cenário pandêmico mundial, sendo atravessado por implicações catastróficas em diferentes instâncias de sua vida política e sociocultural - com consequências que afetaram, sobretudo, determinados grupos e estratos da população brasileira. Naquele ano de 2020, que hoje nos parece tão distante, o lançamento de um livro chamado O Avesso da Pele imediatamente chamou minha atenção: sua trama intensa, abordando temas como violência policial, racismo estrutural e os desafios de uma educação pública precarizada, conclamou-me à leitura desde o contato com sua sinopse até os textos críticos (e elogiosos) abordando o seu conteúdo. Trabalhando em casa, isolado por conta das medidas de contenção do vírus, comprei o livro e o li de um fôlego só. Era impossível largá-lo sob qualquer justificativa: em algumas horas, já o havia devorado.
A história de Pedro e de seu pai Henrique - um professor assassinado pela polícia do Rio Grande do Sul - denunciava um país que a própria pandemia revelava exponencialmente a cada dia: um território violento, desigual, onde determinadas vidas valiam mais do que outras. Era impossível não pensar, a cada página lida, sobre as mazelas que instauraram-se historicamente na sociedade brasileira, e que, agora, diante de uma emergência sanitária global, vinham à tona com uma nitidez alarmante. Era inevitável não relacionar as violências impingidas aos corpos negros das personagens do livro com aquelas que aconteciam, diariamente, em certos espaços de sociabilidade e com populações vulneráveis para as quais as medidas protetivas contra a covid-19 pareciam não chegar, efetivamente.
Não obstante, segundo pesquisas recentes - como dados estatísticos do IBGE, estudos nas Ciências Sociais e Humanas e relatórios da Organização Mundial da Saúde - jovens, mulheres e pessoas negras foram as mais afetadas pela pandemia no Brasil. Não é necessário, entretanto, ir tão longe para se dar conta deste fato: basta lembrarmos quem, mesmo nos momentos mais graves deste período, estava nas ruas, nas fábricas, fazendo serviço doméstico na casa de terceiros ou lotando o transporte público quando o distanciamento social era urgente - apenas para dar algumas amostras da realidade material destes dados.
Para além desse front desigual, presenciamos, ao longo dos meses pandêmicos, diversas violências e omissões do Estado Brasileiro com a sua população, desde resistência às medidas de confinamento para barrar a disseminação do coronavírus, até a negligência com questões cruciais de saúde pública - como a compra emergencial de vacinas. Nesse contingente tão complexo, a população carcerária, das favelas, os alunos das escolas públicas, etc. composta majoritariamente por pessoas negras e pardas, viu-se diante de um duplo desafio: sobreviver à doença e à violência premente do Estado. Enquanto eu lia O Avesso da Pele - repleto de reflexões acerca dessas violências, que estão entranhadas em nossa cultura - as páginas do livro saltavam para a observação direta da vida cotidiana. Ler a história de Pedro e Henrique era ler a história de muitos brasileiros.
Quando a transposição cênica do livro - vencedor do Prêmio Jabuti de Romance Literário, em 2021 - foi anunciada, meu primeiro questionamento foi acerca de como uma narrativa literária tão potente seria engendrada dramaturgicamente, especialmente porque as escolhas no que tange a obra de referência certamente seriam muitas; e, escolher determinadas cenas/passagens/imagens em detrimento de outras em um universo poético tão rico quanto o de O Avesso da Pele, não me parecia uma tarefa fácil, embora estimulante. Entretanto, ao assistir o espetáculo do Coletivo Ocutá (São Paulo) no 30º Festival Porto Alegre em Cena, deparei-me com uma grata surpresa: tanto a perspectiva primeira da peça - a relação pai-filho - quanto a construção dramatúrgica em torno deste prisma central, construíram um trabalho que condensa e estrutura um duplo essencial no palco: o material base do livro de Jeferson Tenório como um ensejo atrelado à linguagem específica da peça, cunhada diegeticamente no cerne da próprio universo teatral.
Quando adaptado para o teatro, um texto literário deve ser colocado em xeque diante de todos os elementos que compõem as artes da cena e é exatamente isso que a montagem de O Avesso da Pele faz. Ao construir sua transposição da obra literária em questão para a cena teatral, a peça constrói ações dramáticas e produz significados por meio de um concatenamento de ideias, referências e imagens que criam um dispositivo cênico próprio, em diálogo com o livro de Tenório, mas sem nele se bastar. Deste modo, ainda que no livro possamos encontrar bem mais situações, descrições e personagens, no espetáculo nos deparamos com outras possibilidades de leitura e fruição daquilo que se conta, ao ponto de não ser necessário ter lido o livro previamente para compreendê-lo, senti-lo e absorvê-lo. É no palco que a experiência de O Avesso da Pele começa e termina: acompanhamos teatralmente toda a trajetória narrativa traçada em uma obra que fala por si mesma.
Com direção da atriz, diretora, professora e socióloga Beatriz Barros - convidada pelo jovem elenco fundador do coletivo para dirigir o projeto - e dramaturgia de Beatriz em colaboração com Vitor Britto, O Avesso da pele narra a história de Pedro e seu pai Henrique, professor de Literatura assassinado em uma abordagem policial desastrosa em Porto Alegre. A peça, diferentemente do livro, foca exclusivamente nesse aspecto: a interpelação dramatúrgica tangenciada pelo filho e pelo olhar lançado sobre a figura paterna. Assim, ainda que no livro esta concepção também exista, no trabalho do Coletivo Ocutá (fundado em 2020 pelos atores Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Victor Salomão, que atuam no espetáculo e revezam-se em cena entre as personagens), o corpo de cada ator opera como significante onde o recurso verbal não dá conta de dizer o que se quer falar, cenicamente. E essa é, talvez, umas das maiores potencialidades da montagem: encontrar os rastros da obra literária por caminhos que só o teatro é capaz de moldar.
Nesta direção, a própria corporeidade do elenco é conclamada a dizer sobre as temáticas que atravessam a dramaturgia - o racismo, a homofobia, a objetificação de corpos negros, a brutalidade policial, as debilidades do ensino público, etc. - uma vez que, como a própria diretora do trabalho disse em uma oficina de escrita que ministrou como atividade formativa no 30º Festival POA em Cena, “A palavra evoca uma estrutura do corpo”. Também nesta oficina, da qual fui partícipe, Beatriz Barros mencionou o fato de que a preocupação com um gestus performativo do elenco - em uma alusão ao ritual performático de Jackson Pollock no seu ato de pintar - ajudou a arquitetar a atuação dos atores ao longo do processo de montagem. Neste sentido, ainda que alguns trechos do livro sejam transpostos literalmente para a cena, eles ressignificam-se no contato com os códigos teatrais, tomando outro fôlego e outra corporatura no âmbito da cena; é em contato com o corpo dos atores que o texto literário se ressignifica e se potencializa, convertendo-se em imagem.
A partir dessa transposição que é, sobretudo, imagética e atmosférica - ainda que bastante verborrágica - O Avesso da Pele coloca o espectador diante de um teatro como imersão. Essa imersão se dá de diferentes maneiras, em uma relação de retroalimentação entre dramaturgia e encenação, que se fundem para significar palavras e imagens através de mecanismos distintos que alternam-se ao longo do trabalho. A escolha de não zerar o corpo dos atores em cena, por exemplo, também não zera os próprios mecanismos em andamento, uma vez que ninguém sai de cena em momento algum, já que não há a possibilidade do uso das coxias. Nesta arquitetura cênica, o elenco vai passando de um personagem a outro, de uma situação a outra, atravessado por um conjunto de elementos sonoros e estéticos que interpelam sua atuação e preenchem as lacunas deixadas pelo livro como possibilidade criativa no fazer teatral. Assim, a presença do funk e das danças urbanas, a recepção da música como se estivéssemos ao lado de um DJ, o uso da luz vermelha e azul como símbolo da violência policial e os papéis caindo do teto como metáfora para a morte - para citar apenas alguns exemplos - são dispositivos que potencializam cenicamente a adaptação da obra de Tenório.
Outro aspecto importante, neste âmbito, é que o tempo inteiro a encenação emula a experiência de viver enclausurado em um apartamento - o apartamento que pertencia ao pai assassinado - como um signo de claustrofobia social e política que os personagens carregam em suas histórias. E, ainda que a peça não se passe apenas neste espaço - o de um apartamento - é para ele que o espectador se vê retornando sempre, como ponto de partida da restauração identitária de Henrique pelo viés do filho. É especialmente interessante perceber que, mesmo diante desta premissa, o palco está continuamente transformando-se em outros espaços propostos pela dramaturgia (um consultório, uma sala de aula, uma rua, um baile funk) e em sensações físicas que materializam-se no corpo do elenco (uma crise de ansiedade, um medo, uma alucinação). Todavia, é como se estes espaços, a projeção dessas imagens, estivessem acontecendo em eventos pretéritos na cabeça dos próprios personagens; como se, de fato, estes corpos nunca tivessem saído deste lugar. Vale ressaltar que o processo de ensaios de O Avesso da Pele foi realizado, segundo a diretora, em seu próprio apartamento. Ou seja, o que se mostra como aparente adversidade, contudo, pode ser arquitetado de modo bastante feliz na cena - inclusive resolvendo problemáticas de transposição do material literário.
A quebra da quarta parede também amplia o olhar para o que é narrado cenicamente. Desse modo, reflexões importantes levantadas pelo livro como a desigualdade econômica e a precariedade da educação pública, são delineadas no espetáculo através da relação direta entre ator e espectador. Um momento bastante expressivo, neste sentido, é a aula sobre Crime e Castigo de Dostoiévski - uma das melhores aulas dadas por Henrique antes do professor ser morto pela polícia. A construção da cena catapulta o público para dentro do ambiente escolar, levando, inclusive, duas pessoas para o palco a fim de narrar e construir uma sequência do livro estudado a partir de um jogo de improviso entre os espectadores participantes e o elenco. Trata-se de um momento extremamente cômico, com uma liberdade criativa alargada entre palco e plateia, possibilitando riscos e imprevistos que contribuem para essa comicidade. É como se neste respiro, nesta cumplicidade, “uma das melhores aulas dadas por Henrique” fosse contemplada por todos nós. Como se realmente estivéssemos lá.
É por meio destas quebras, experimentações, proposições narrativas e relações diversas entre ator e espectador que O Avesso da Pele se tece como uma obra única, mesmo tendo como referência um livro tão importante no cenário da literatura brasileira contemporânea. Mesmo preservando o avesso, aquilo que está dentro da obra literária e que lhe é essencial, o espetáculo escolhe e organiza seus próprios passos - não sem render homenagens e diálogos políticos diretos com tudo o que a obra de Jeferson Tenório representa, como o imenso montante de livros que compõem a cenografia. E, em um momento como o atual, em que livros estão sendo perseguidos e censurados em nosso país (inclusive o próprio livro no qual a peça é inspirada) como forma de interditar e silenciar o debate público sobre temáticas inadiáveis - como o combate ao racismo - a junção entre literatura e teatro não gera apenas beleza e potência artística, mas também espaços de luta e resistência alimentados pelo poder irrefreável da criação.
**insira todas as tags, separadas por vírgula (,)
Selecione os Festivais em que essa peça foi exibida. Utilize a tecla Ctrl para selecionar mais de uma opção.
Realização: Coletivo Ocutá
Direção: Beatriz Barros
Assistência de direção: Vitor Britto
Elenco: Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Victor Salomão Dramaturgia: Beatriz Barros e Vitor Britto
Direção musical: Felipe Oládélè
Preparação corporal e direção de movimento: Castilho
Preparação vocal: Malú Lomando
Concepção e criação do desenho de Luz: Gabriele Souza
Figurino: Naya Violeta
Cenografia: Wanderlei Wagner
Operação de Luz: Gabriele Souza
Operação de som: Dj Akinn
Direção de produção: Jennifer Souza
Produção: Corpo Rastreado | Jack dos Santos
Fotografia: Helbert Rodrigues
Filmagem: Matheus Brant e Gabriela Miranda