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E lá está ele na minha carteira, desde a saída do Teatro, um pedacinho do matzá, pão ázimo e não fermentado, um dos símbolos e alimentos consumidos no Seder durante o Pessach judeu.
Quando somos convidados a entrar no espaço cênico de Raiz Amarga, somos convidados adentrar à partilha. Ao ritual que provoca o encontro. Do afeto coletivo das refeições que compartilham e contam segredos. Comida, conversa, memórias. Raiz Amarga – Por que esta noite é diferente de todas as outras nos aproxima da complexa retórica do recordar. Nem sempre fácil. Por vezes, dolorido. Mas, fundamental para que histórias não se percam, não sejam esquecidas e, muitas delas, não sejam repetidas.
“Má Nishtaná Halaila Hazê Micol Haleilot?” ou “Por que esta noite é diferente de todas as outras noites?” Trata-se de uma pergunta milenar feita pelas crianças judias durante o Pessach. Entre todas as respostas, uma potencialmente chama atenção:“Por que esta noite é diferente de todas as outras?Em todas as noites comemos todas as ervas, nesta noite somente as amargas.”
Amargas como as dores sofridas pelos judeus durante a escravidão no Egíto (em que o Pessach configura-se como a celebração da libertação do povo judeu) e as feridas do Holocausto na Segunda Guerra Mundial. Em cena, Letícia Schwartz divide conosco suas memórias, onde a figura da matriarca, sua avó, surge como base na construção narrativa de uma dramaturgia contemporânea que utiliza de recursos autoficcionais, documentais e de testemunho para compor seu tecido histórico-literário. Apostando em um relato de si, a personagem-real propõe um mergulho, profundo e sensível, de dentro para fora, do íntimo para o coletivo. É como se compreendendo a si pudesse compreender o mundo e, mais, reinventar a história, criando novas possibilidades para uma nova realidade. “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”, teria dito Liev Tolstoi, escritor russo.
Raiz Amarga pintou, contou e cantou sua aldeia. Em um jantar festivo, a celebração da vida sublima a dor. Leticia e a atriz Arlete Cunha, juntas em cena, dão o tom íntimo, cúmplice, de uma boa conversa. Ainda que não sejam as memórias de Arlete colocadas em cena, diferente de Letícia que representa a si, a atriz cria uma personagem de interlocução com as memórias de Letícia. Com diálogos e acordos que nos levam com elas a todo o momento. Em uma afinação precisa, elas não nos perdem. Nos tornam parte e nós aceitamos, acordamos, e como participes endossamos o jogo cênico, que de maneira leve, mas não menos intensa, transita por cenas densas e de bom humor. O público não é, tão somente, espectador, mas convidado a partilhar junto, degustando um vinho, saboreando a salsa e o matzá, alimentos servidos no Seder, tornando-se membro desse grande jantar, ritual de encontros e memórias.
Entre pratos, taças, alimentos, personificação do real, a cenografia desenha e compõe a simbologia da cultura judaica. Uma grande mesa retangular é a estrutura que reúne o público, sentado ao seu redor, enquanto as duas atrizes permanecem no centro, espaço preenchido por memórias, onde tudo passa a ser compartilhado. A concepção do dispositivo cenográfico foi inspirada em um trabalho do artista francês Charlie Windelschmidt, conforme nos relata o diretor e também dramaturgo do espetáculo Clóvis Massa. Charlie é diretor da Compagnie Dérézo e duas obras do coletivo trazem à cena a ideia da partilha, da mesa, da comida. Le Petit Déjeuner, de 2016, e Apérotomanie, um Rituel-apéritif, criada em 2021. Na primeira obra duas atrizes em cena em um café da manhã. No segundo espetáculo um momento do “apéro” (aperitivo), encontro francês ao final da tarde para socializar entre amigos e família com comidas (petiscos) e bebidas. Ambos os trabalhos para poucos convidados, em média 40 pessoas, em um ritual do beber, comer e conversar.
No entanto, como a Cia Dérézo cita: “Não se trata da refeição propriamente, mas de um convite para se ler nas entrelinhas”. Assim, acontece, também, no espetáculo Raiz Amarga. O Seder, jantar realizado nas duas primeiras noites do Pessach, a tradicional Páscoa Judaica e que relembra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito, é uma das camadas desse sensível trabalho artesanalmente bordado pelas vivências de Letícia e sua família, que são compostas pelas histórias e trajetória da sua avó, Reli Blau, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, e atravessadas pelas dores e violências que o Holocausto provocou e ainda provoca em seus descendentes. Sendo assim, a celebração do Pessach – com suas narrativas, cânticos, alimentos – transborda as linhas históricas e nos convida, nesse espaço cênico e ritualístico, para testemunharmos e refletirmos sobre nossa realidade do hoje, momento presente, nesse espaço do aqui e agora, tão efêmero como a arte teatral e tão pleno de possibilidade de transformações, acordos e tensionamentos a cada nova apresentação, a cada novo convidado a desfrutar o Seder. A arte do encontro.
Letícia, atriz e áudio-descritora, e Clóvis Massa, diretor e professor titular do Departamento de Arte Dramática da UFRGS – junto a uma equipe afinada, seja no desenho de luz, caraterização ou trilha sonora autoral – conseguem trazer aos palcos um projeto cuidadosamente elaborado, uma pesquisa documental dentro das Artes da Cena, com uma construção refinada, tocante e reflexiva. Escolhem o “simples” para contar essa história, sem a necessidade de artesanias tecnológicas. O Teatro é um espaço onde tudo pode, mas nem tudo conecta ao um dos seus principais objetivos: a troca com o Outro. Raiz Amarga consegue.
O projeto do espetáculo nasceu, por volta, de 2020, a partir de textos de Letícia Schwartz. Informações como está, técnicas e de pesquisa, como termos e expressões da cultura judaica, podem ser acessados pelo espectador por meio de um libreto da obra entregue antes do espetáculo, o que já conecta e coloca o público em estado presente, com informações prévias importantes, para o entendimento e mergulho na mise-en-scène. Raiz Amarga, também, foi o grande contemplado no Prêmio Açorianos de Teatro Adulto 2023, com prêmios de melhor espetáculo, direção, dramaturgia, cenografia e melhor atriz para Leticia, além de indicações.
Sem dúvidas, Raiz Amarga – Por que esta noite é diferente de todas as outras é um espetáculo do “encontro”. Pessoal, social, coletivo. Do outro com o outro. Do mais íntimo, com o que está em nós, com o que está no Mundo. Um Ritual para o reencontro.
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Elenco: Letícia Schwartz e Arlete Cunha
Direção: Clóvis Massa
Dramaturgia: Clóvis Massa e Letícia Schwartz
Produção: Naomi Siviero e Carla Cassapo
Iluminação: Carol Zimmer
Cenografia: Rodrigo Shalako
Trilha sonora: Daniel Roitman
Figurinos: O grupo
Audiodescrição: Mil Palavras Acessibilidade Cultural
Captação de recursos: Giuliana Neuman Farias