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Não há como falar do espetáculo Onde está Cassandra? - celebração de 25 anos de história da drag queen Cassandra Calabouço - deixando de lado meu próprio atravessamento como parte da comunidade LGBTQIA+ desta cidade desde a década de 1990, exatamente quando veio ao mundo Cassandra, ainda presa aos muitos calabouços aos quais foi profeticamente condenada quando batizada. Nesta época, de fato, todes nós vivíamos, em maior ou menor medida, no esconderijo de calabouços e porões da capital, tendo como verdadeiros oásis a célebre casa noturna Vitraux e os bares Venezianos e Ocidente, que merecem também ser celebrados por serem redutos de (re-)existência – locais onde cada um podia ser quem era sem medo de sofrer retaliações físicas ou morais.
E foi justamente em uma festa no Ocidente, em 1998, que Cassandra foi encarnada, após uma gestação de mais de 20 anos, desde as brincadeiras de criança do bailarino, ator e performer Nilton Gaffrée Júnior. Parafraseando Beauvoir, ouso dizer que uma drag não nasce, mas se monta no (e para) mundo. E essa montaria, como o espetáculo demonstra, se faz não apenas na construção – bafônica e necessária, diga-se de passagem – de um visual “over”, cheio de luxo em figurino e maquiagem, mas na composição desta persona feminina que transborda e desabrocha a partir de um corpo que tende a ser mais preso ao sistema de gênero binário compulsório. Por isso o título desta obra é tão instigante: Onde está Cassandra? A drag mora neste corpo dissidente, nas roupas, adereços, perucas, saltos gigantescos, plumas, paetês e makes, ou nos recônditos da psique e da memória de Nilton?
No palco, para jogar com o título, vemos cinco drags, todas “gêmeas”, vestidas e maquiadas de maneira semelhante, executando diversos números como o do tradicional lipsync e coreografias muito bem construídas a partir de uma trilha sonora cirurgicamente costurada com a cena – o que aliás, é uma das assinaturas da direção de Diego Mac. Aqueles sem maior intimidade buscam descobrir quem é a aniversariante no meio do quinteto em que atuam também as drags convidadas Alpine a grande, LadyVina, Savanah Queen e Zélia Martinez. Para cada quadro, além da revisita a números icônicos de Cassandra, também foram criadas novas cenas em que as cinco artistas ora dialogam com o burlesco em interações e jogos diretos com a plateia, ora trazem em flashes situações cômicas vividas pela artista e também em alguns momentos ganham tom de seriedade para falar de temas mais pesados, como o preconceito vivido por Cassandra.
Apesar do preconceito estrutural, vale mencionar aqui que a drag queen enquanto expressão artística do movimento queer oferece algumas vantagens. Primeiro, porque se trata justamente de uma forma de arte, o que historicamente facilitou o trânsito de drags para fora da bolha dos redutos LGBTQIA+, pois elas podem ser dissociadas mais facilmente de uma identidade de gênero ou de um ofício ligado ao sexo (como infelizmente as travestis são vistas) – os quais são fontes de profundo preconceito em nossa sociedade. Por isso, Cassandra, assim como outras precursoras do movimento drag gaúcho, conseguiram com seu trabalho gradualmente ao longo deste último quarto de século penetrar (com toda a conotação merecida do verbo) a sociedade machista e homofóbica do RS ao trabalharem como animadoras ou atrações em eventos que iam das despedidas de solteiro à festa de final de ano de empresas, conforme a narrativa de Cassie aponta ao longo do espetáculo.
A segunda vantagem das drags é que, por trabalharem com a linguagem burlesca e ter como natureza intrínseca a extravagância não apenas estética, mas de personalidade, estas personas ganham a mesma liberdade (invejável) que os palhaços têm: a de poder falar verdades com uma franqueza que os próprios artistas que as encarnam não podem ter. Por tudo isso, celebrar Cassie é também celebrar esta figura que foi porta-estandarte e conseguiu trazer mais voz e visibilidade para o movimento LGBTQIA+ no nosso Estado, inclusive atuando diretamente com a ONG SOMOS e a parada LIVRE de Porto Alegre.
E esse borrar de fronteiras intrinsecamente queer se faz ainda mais potente quando uma Drag chega aos palcos com um espetáculo como Onde está Cassandra?, no qual podemos prestigiar a potência desta figura icônica e de sua linguagem ocupando um outro lugar artístico ao construir uma obra cênica completa muito bem estudada e delineada. Com dramaturgia e iluminação de Gui Malgarizi, bem como coreografia e direção de Diego Mac e do próprio Nilton (e Cassandra), que trabalham juntos na Cia Macarenando Dance Concept, a obra se utiliza com propriedade da estética drag para compor uma sequência de cenas visualmente exuberantes, costuradas com uma dramaturgia não linear, organizadas como lampejos das memórias de Cassandra retiradas de seu diário. O jogo estabelecido por Mac e Nilton é propiciar uma Cassandra que se multiplica em mais 4 corpos muito diversos entre si, encarnando-a cada um a seu jeito. A personagem, ao mesmo tempo, também se fragmenta em pedaços, e seu adereço mais marcante – a peruca – chega a ganhar vida própria a certa altura.
Para completar esse time na ficha técnica, os looks “de lacrar” no espetáculo são assinados por Antonio Rabàdan, célebre figurinista da cidade e nada menos que o amigo pessoal de Nilton responsável por encomendar a primeira apresentação de Cassandra para uma festa. O destaque do espetáculo vai para o casamento desta estética de figurino e adereços com a iluminação de Gui Malgarizi. Além do ritmo, das personagens e da trilha envolventes, as cenas se tornam quadros muito bem delineados em sua visualidade, e a experimentação por vezes dá o tom para que a obra não caia na vala do estereótipo do que se espera da arte drag. E Cassandra usa muito bem seus 25 anos de experiência de interação direta com a plateia. Não à toa, as primeiras temporadas estiveram todas lotadas.
Assim, a pergunta provocadora do título é respondida no imaginário de quem se deleita não só com a performance, mas com o legado de Cassandra Calabouço, o qual se espraia para além da sua personalidade peculiar, passando por todas as suas memórias de atuação como artista e ativista, mas também pela sua escola, que vem abrindo a possibilidade de mais e mais Cassies surgirem. As quatro companheiras de Cassandra no palco são “filhas” do curso Pimp My Drag, pioneiro na área, ministrado por Cassandra para fomentar o estudo na Arte Drag desde 2015. De fato, ser Drag é por si um ato político, e Cassandra, bem como suas precursoras Dandara Rangel e Rebeca McDonald – homenageadas postumamente no espetáculo – estão em todos os lugares onde uma drag conseguiu espaço no nosso Estado depois de elas terem esgaçado bordas e fronteiras, estão na memória daqueles que diminuíram um pouco seus preconceitos ao vê-las e estarão nos “closes” que as suas sucessoras ainda darão mundo afora.
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Direção, Coreografia e Trilha-Sonora: Cassandra Calabouço e Diego Mac Texto: Cassandra Calabouço e Gui Malgarizi Elenco: Alpine, a grande (Aline Karpinski), Cassandra Calabouço (Nilton Gaffrée Jr.), LadyVina (Gabriel Tochetto) Savanah Queen (Alexandre Freitas) Zélia Martínez (Zé Passos) Dramaturgia e Iluminação: Gui Malgarizi Figurino: Antonio Rabadan Produção, redes sociais e operação de som: Giulia Baptista Vieira